Chico Alencar (*) –
“Momo é o único rei que amei", cantam meus amigos Aldir Blanc e Moacyr Luz, republicanos de quatro costados. O chamado "tríduo momesco" é festa de resistência, deboche diante da sisudez do poder. A terça-feira é "gorda" porque, desde os tempos medievais, sendo o último dia antes da Quaresma, abria quarentena de jejum e abstinência que a maioria praticava, em mortificação. Alguns rebeldes, na contramão, aproveitavam: comamos muito, bebamos tudo, pois amanhã são cinzas...
Crivella, com sua evidente má vontade para com o Carnaval, não é pioneiro. As autoridades, desde o entrudo colonial - folguedos dos escravos que os senhores aturavam (válvula de escape em uma vida de "três pês", pau, pano e pão) - sempre tentaram colocar limites na folia popular.
É quase inacreditável, mas o segundo governo da República, do marechal Floriano, decidiu transferir a festa para junho, pois o verão tropical e a multidão nas ruas em fevereiro poderiam propagar epidemias letais. O povo fez careta para a morte e brincou duas vezes. Vinte anos depois, em 1912, outro marechal-presidente, Hermes da Fonseca, determinou cancelar os batuques em luto pela morte do respeitável Barão do Rio Branco. Não funcionou, e milhares desfilaram e zoaram pela Avenida Central - a atual Rio Branco.
No final da década de 20 do século passado, conselheiros do município do Rio, com seus ternos escuros, gravatas e chapéus, caretas que só, cogitaram mesmo extinguir a festa, que dava à capital da República um aspecto de "povoado africano", e nos distanciava da cidade ideal, europeia ou norte-americana. Foram ridicularizados. J.Carlos chargeou esses doutores nas páginas de "O Malho": "Acabar com o carnaval? Cuidado, conselheiros. Por muito menos fizeram a Revolução Francesa!"
Luiz Antonio Simas, que sabe tudo da cultura popular carioca (e das nossas belas raízes), diz, sobre o carnaval, que "a festa é espaço de subversão de cidadanias negadas. Inventou-se na rua a aldeia roubada nos gabinetes. Disciplinar a rua, ordenar o bloco, domesticar os corpos, sequestrar a alegria (prova dos nove!) e enquadrar a festa, por sua vez, foi a estratégia dos senhores do poder na maior parte do tempo."
Há quem diga que não há razão para se festejar. Mas Carnaval é celebração onde sempre couberam sátiras e protestos contra injustiças e opressões. Caetano e Gil sabem que "a tristeza é senhora, desde que o samba é samba é assim". E também que, com "a lágrima clara sobre a pele escura (...) o samba é pai do prazer, é filho da dor, o grande poder transformador".
Esperar felicidade geral e direitos para todos para só então brincar o Carnaval é não querer que ele exista. Zé Pereira, sapateiro português, foi o pioneiro dos blocos do Rio, em meados do século XIX. Ele bateu bumbo chamando toda gente para ocupar os espaços públicos. A rua não pode ser apenas lugar de negócios, de escoar produção, de trabalho - explorado e, em grande parte da nossa história, escravizado.
Nas ruas e praças cabem também as canções, as batucadas, as marchinhas, os frevos, os sambas. Como os abraços e os beijos: Carnaval pode ser fragmento do futuro, prenúncio de humanidade nova, fraterna. Chico Buarque, pouco mais que um menino, falava da festa, em uma de suas primeiras composições: "era uma canção, um só cordão, uma vontade, de tomar a mão de cada irmão pela cidade". Somos feitos para o encontro, para a troca, para a harmonia com o outro, que nos completa.
Carnaval, imortal - e passageira - vitória da ilusão, como insistem em cantar Aldir e Moa. Onde "o menino é menina, e o doutor juiz, a bailarina". Apoteose do delírio humano: "o carnavalesco é um deus maldito, e isso é que é bonito, recriar a criação! Das cinzas à Ressurreição!".
Os donos do poder vivem carrancudos, com medo de perdê-lo. Já nós, sabemos que cantando mandamos a tristeza embora.
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(*) Chico Alencar é professor e escritor.