Angélica Torres -
Há vantagem em ir ver O Processo sem ter lido críticas que contem o filme, o que às vezes parece inevitável aos do ramo. De todo modo, tendo ou não lido, é uma excelente saída, pra não dizer uma obrigação cívica, assistir ao documentário de Maria Augusta Ramos, que inova na linguagem da narrativa ao mesclar jornalismo e tratamento de filme de ficção; os participantes não são identificados com legenda; tudo fica embutido, mas às claras, porque a tragédia do golpe parlamentar e jurídico no Brasil se tornou conhecido em todo o mundo, daí também a causa da grande repercussão do documentário no exterior.
Apesar da dureza de se rememorar toda a farsa surreal do impeachment de Dilma Rousseff, periga o espectador se pegar esperando um final feliz, de tão bem levado tecnicamente é o filme nesse aspecto do trato ficcional. É admirável ainda em planos e fotografia, em que Brasília mostra sua fotogenia nas cenas externas. Também em sonoridade, sem o velho truque de direcionar emocionalmente o espectador por meio de uma bela trilha sonora. Como cinema, O Processo se constitui de fato em um trabalho talentoso, competente, sensível.
Já em termos de conteúdo, se as lentes da cineasta mostram as mesmas cenas, ou variações delas, vistas pelo público televisivo durante os atos protocolares do impeachment, trazem também uma impensada novidade: as tomadas nos bastidores das confabulações, em reuniões fechadas no gabinete do Partido dos Trabalhadores. Ali, Gleisi Hoffman, presidente do partido e Gilberto Carvalho, então secretário de governo, surpreendem, por exemplo, com corajosas análises e mea culpa. Afinal, uma câmera bisbilhoteira estava autorizada a filmar e a revelar, mais adiante, aquela intimidade nas telas de cinema.
Da longa e complexa trama diabólica do golpe, na dramaturgia que Maria Augusta encadeia, tomando partido, os protagonistas são esses, do time boicotado, representado pelos senadores que se destacaram no combate ao golpe – Gleisi, José Eduardo Cardozo, Lindbergh Farias e Vanessa Grazziotin. Entre alguns outros mais.
Fica-se pensando. E se ela filmasse também os bastidores da turma do golpe? Que zombarias, que chacotas ela flagraria? Talvez não mais do que mostram com clareza, em discursos incrivelmente cínicos, canastrões, amplamente vistos pelo público, os caricatos Janaína Pascoal e Cássio Cunha Lima, além de um calado e taciturno Anastasia, sobretudo Eduardo Cunha, cozinhando e fomentando o caos na fogueira do diabo, entre outros protagonistas da fanfarra Temer.
Dilma Rousseff ganha espaço ao final, com o destaque pela sensível diretora de sua melhor cena, ocorrida durante a votação final do impeachment, e dividida com Cunha Lima – quando ela não perde a oportunidade de revidar à desfaçatez dele, dizendo: “A vida é assim, senador...”. Quem não lembra ou não observou o flagrante, O Processo registra. E documenta para a História que tudo não passa de um escracho, um escárnio pra com o elenco dos usurpados: o povo, tenso, do lado de fora e os que se esfalfam no Senado pra provar um-nada-há-que-ser-provado, porque tudo é e está na cara comprovado.
Ao longo da projeção, a plateia do filme cria sua própria trilha sonora: não se contém em interagir com os atores dos dois lados do muro-tribuna e de ao final catarsear ante a revivenda desse bruto capítulo da nossa História. A farsa tragicômica é gritante. Mas, se processa, como amadurecemos de lá pra cá. Como aprendemos de malícia com a velhacaria exposta sem pudores. E, como desde então os golpistas sovam o lombo dos mais pobres, não deixando a vida fácil nem barata, pra ninguém.