Alexandre Ribondi -
O socialista António Guterres, que já foi primeiro-ministro de Portugal pelo Partido Socialista (de que foi um dos fundadores, logo após a Revolução dos Cravos, em 1974), ex-alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), foi escolhido secretário-geral da ONU, o que faz com que essa organização intergovernamental, criada em 1945, com sede na cidade norte-americana de Nova Iorque, seja, pela primeira vez, comandada em português, língua que, por sinal, ainda não é oficial na casa.
A indicação do político e diplomata lisboeta pode ser vista como uma conquista, mas a grande pergunta é: e daí?
A lista dos secretários-gerais que antecederam Guterres é sintomática. Até os anos 1950, os nomes vinham de países europeus de boa situação econômica e com peso no cenário internacional, como Suécia e Áustria.
A partir daí, a coisa mudou de figura e a ONU tem sido permanentemente chefiada por representantes de Gana, Mianmar, Peru e Egito. Isso pode querer dizer que essas escolhas são melhores para os países dos secretários do que para a paz mundial.
Porque parece ser mesmo verdade a opinião de Mafalda, criação de Quino, o cartunista argentino, sobre a organização: "A simpática inoperante".
Talvez por isso, o português não tenha tido grandes concorrentes na disputa pelo mais alto cargo das Nações Unidas. É o que se pode dizer que candidatos que vêm da América Latina (Argentina e Costa Rica) ou de terras longínquas em nosso imaginário como Bulgária, Croácia, Moldávia, Eslovênia e Montenegro. Isso sem esquecer que, no contexto europeu, Portugal também é periferia.
Mas que não sejamos pessimistas nem detratores. A jornalista portuguesa Graça Vasconcellos, que nunca votou em Guterres, acredita que ele é o homem certo no lugar certo: "Ele tem os princípios, a dedicação e o perfil para o cargo". Além disso, como ela diz, "Guterres tem se destacado na luta a favor dos refugiados e, assim, acabou por construir o seu caminho até a ONU".
Como Alto Comissário para os Refugiados (2005 a 2015), ele se destacou por não se cansar de advertir os países ricos para que "fizessem mais pelos refugiados, pois os milhões de pessoas que fogem dos conflitos na Síria, Iraque e Afeganistão acabariam vindo para a Europa, se países como Jordânia e Turquia não tivessem oferecido ajuda".
E sempre tocou numa ferida aberta da Europa: "Os que dizem que não podem receber os refugiados sírios porque são muçulmanos estão apoiando as organizações terroristas e permitindo que elas sejam muito mais efetivas para recrutar".
Como primeiro-ministro português, tem recebido elogios até mesmo de seu rival político, Cavaco Silva, ex-presidente de Portugal, que afirmou que Guterres é "uma voz ouvida e respeitada no mundo todo".
Como primeiro-ministro do seu país, António Guterres também foi aplaudido, mas nem tanto. O arquiteto francês Laurent Scanga, que há mais de 20 anos mora na cidade do Porto, no norte de Portugal, lembra que ele, no comando da administração portuguesa era "um pouco mole, assim como um pudim francês".
Acontece, na verdade, que Guterres é da chamada "esquerda católica" (sempre foi praticante fervoroso da sua fé) e quando, durante o seu mandato, foi lançado o plebiscito para tirar o aborto da ilegalidade, ele não chegou a fazer campanha contra, mas avisou aos portugueses que era contra.
Até hoje, é acusado de ter colaborado para a derrota da legalização do aborto em Portugal. Mesmo assim, esteve à frente de Portugal durante os anos 1990, quando o país ia bem de finanças e quase não havia desemprego.
Como secretário-geral da ONU – Guterres assumirá o cargo no dia 1º de janeiro de 2017, até lá continua no cargo o sul-coreano Ban Ki-moon – ele já afirmou que aceitou o cargo com "humildade, gratidão e responsabilidade" e que pretende recuperar os primeiros propósito da organização. E tem sido cauteloso diante da tarefa que tem pela frente.
Uma delas é encontrar solução para a guerra na Síria; a outra será ampliar o número de membros permanentes - atualmente são apenas cinco: EUA, China, Rússia, Reino Unido e França – no Conselho de Segurança da ONU, o mesmo desde 1945. O Brasil reivindica mudanças nessa composição em nome da multipolaridade mundial.
Mesmo afirmando que o "verdadeiro vencedor é a credibilidade das Nações Unidas", ele diz estar "absolutamente consciente dos problemas e dos limites da organização". Por isso, se define agora como um "construtor de pontes".
Aliás, o chefe supremo da Igreja Católica é, e não por acaso, também chamado de pontífice, palavra latina que quer dizer exatamente "construtor de pontes".
Como se vê, António, de Nova Iorque, e Francisco, do Vaticano, poderão trabalhar juntos. E que a paz esteja conosco.