"A vida é de quem se atreve a viver".


Cena de "Silêncio", de Martin Scorcese, em cartaz no Cine Cultura do Liberty Mall
Silêncio de Deus

João Lanari Bo -

Como é possível dialogar com Deus? O Deus dos cristãos veio à Terra na forma de Filho, para sofrer o calvário da cruz e dialogar com o povo eleito, os judeus.

Deixou um núcleo de seguidores que se multiplicou pelo mundo. O mito de Cristo resta como a mais bem sucedida construção mítica da história.

No Japão medieval, muitos foram os que procuraram a palavra de Deus. Muitos foram também os que pagaram com a vida por essa procura, ou que praticaram a fé em cavernas e catacumbas, tal como os cristãos primitivos no Império romano.

Martin Scorcese é um dos raros diretores de cinema detentor de uma poderosa marca autoral. Não é pouca coisa.

Mafiosos sádicos e cocainômanos de Wall Street são habitués na sua galeria de personagens, mas as mazelas da espiritualidade também tem espaço na sua filmografia, da última tentação de Cristo ao indefectível Dalai Lama.

Agora o ítalo-argentino aventura-se na incrível saga dos jesuítas no Japão, na aurora da globalização, em pleno século 16, quando os navegantes portugueses deram a volta no globo:     “Silêncio”, a magnífica produção de Scorcese, narra as desventuras dos “padres” em meio a um dos períodos mais conturbados da história do país-arquipélago, quando o Xogunato Tokugawa buscava afirmar-se diante dos irascíveis e impiedosos senhores feudais.

O filme inspira-se na obra do igualmente magnífico Endo Shusako, raro escritor japonês de confissão católica, habilidoso em romances históricos.

Padre Cristovão Ferreira, por exemplo, é um personagem real: acabou fazendo a apostasia, renegando sua fé cristã, depois de seis horas pendurado de cabeça num poço, com um sutil corte na jugular.

Ferreira, no livro e no filme, é o objeto da busca de dois devotados e jovens jesuítas.

Apostatou para poupar não apenas a própria vida, mas também a dos japoneses que insistiam na fé cristã.

Naquele contexto histórico, não era apenas a fé que incomodava os opressores – ao longo do “século cristão”, como é conhecido esse intervalo histórico, muitos desses cristãos participaram de sublevações contra a ordem feudal.

Uma história de mártires e devoção, que durou de 1549, com a chegada de São Francisco Xavier ao Japão, até 1650, com a proibição do comércio exterior e o estabelecimento de um minúsculo entreposto comercial holandês em Nagasaki, único contato do Japão com o mundo exterior.

No apogeu, cerca de 300 mil almas seguiam Jesus Cristo no Japão. Depois de pouco mais de 200 anos de isolamento, vieram à tona quase 60 mil remanescentes, os “cristãos ocultos”, que mantiveram a fé nas cavernas.

Hoje, no sincrético e utilitarista Japão moderno, um por cento da população segue o cristianismo.

Mas, como diz o Inquisidor Inoue, um dos melhores personagens do filme e livro (também real), o Japão é um pântano.

As pessoas nascem xintoístas, casam cristãs e morrem budistas, diz o dito popular.

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