João Lanari Bo -
“O Estado sou eu”, dizia Luís XIV aos seus acólitos; muitos, sobretudo o círculo próximo de nobres e adjuntos alojados no Palácio de Versalhes, veneravam o corpo real como um corpo-nação, um corpo ungido do signo de toda uma população.
No filme de Albert Serra, o instigante “A morte de Luís XIV”, o corpo respira o seus últimos suspiros.
Planos fechados do Rei, médicos, camareiros e cortesãs, ambiente escuro e cores fortes (vermelho), compactam a energia solar numa tumba claustrofóbica, o quarto real. O ar circula pouco, a gangrena avança na perna do Rei.
Os franceses dispõem de uma admirável narrativa desses dias de doença e agonia, na pena do notável Duque de Saint-Simon.
Certa vez o Rei-Sol disse a Philippe d’Orleans, seu sobrinho, futuro Regente: “Você verá um rei na tumba e outro no berço. Lembre-se sempre da memória de um e dos interesses do outro”.
Foram seis dias de uma sofrida atividade testamentária, do corpo-reino ao corpo-alma pós-morte.
O ano era 1715, “ano considerável para a história da França, pois ela viu morrer Luís XIV no primeiro dia de setembro, três dias antes dele completar setenta e sete anos, no septuagésimo-segundo ano de seu reinado”, informa nosso Duque.
Nessa breve cronologia a vida se confunde com o poder divino do trono. O corpo nasceu e pereceu iluminado.
No filme, ardis dos doutores sobrepõem-se ao temor reverencial dos camareiros. Os doutores se esmeram na prática do saber médico, o discurso é o poder, diria Foucault.
Mas o corpo, cada vez mais imobilizado, gangrena. Recusa alimentos, sussurra. Os detalhes podem ser sórdidos, o corpo desce à terra.
Por último, a grande tacada: Jean-Pierre Léaud, o “enfant terrible” da nouvelle vague, investido do corpo-nação, admirável.
Do tagarela compulsivo dos filmes de Godard e Truffaut- sempre franco, porém imaturo - Léaud adormece no corpo-real e eclipsa o próprio filme.
Os radicais enxergarão em Luís XIV seu melhor papel. Só ele vale o filme.