"A vida é de quem se atreve a viver".


Explodir o Capitólio? A recente eleição nos EUA revelou esse desejo latente na sociedade norte-americana
Explodiram o Capitólio em Washington!

João Lanari Bo -

A nova série do Netflix – “Designated Survivor” - atingiu o paroxismo: o primeiro episódio abre simplesmente com uma devastadora explosão no Capitólio, sede do Congresso americano.

Não ficou pedra sobre pedra: como o evento era o “State of the Union” presidencial [discurso Estado da União], morreram o Presidente, o Vice, Senadores, Deputados, membros do Gabinete, dirigentes das Agências, enfim a Administração com “A” maiúsculo, como dizem nos EUA.

Sobrou um “designated survivor” [“sobrevivente designado”], o secretário de Habitação (com nível de ministro), escolhido para ficar de “reserva técnica” (não se sabe se o dispositivo existe realmente na legislação, de qualquer modo vale como “dramatic license”). O novo mandatário, pego de surpresa, naturalmente, não é outro senão Kiefer Sutherland, que os espectadores se lembrarão na popular série “24 horas”, como agente Bauer.

Da sua antiga encarnação, Kiefer guardou a sofreguidão das reações e respostas rápidas, que podem sugerir uma certa eficiência gerencial. A mudança agora é que ele é bem intencionado e politicamente correto, sem pertencer nem ao Partido Democrata nem ao Republicano. Independente e, por óbvio, avesso à politicagem em Washington.

Não é de hoje que as séries americanas para televisão vêm conquistando o público e incorporando uma complexidade dramática inédita nos corações e mentes dos espectadores.

A novidade é a condescendência de um público tido como culto e informado em apreciar, louvar e refletir sobre as séries, catapultadas definitivamente para o status de “obra de arte” (muita gente chega a dizer que assiste as séries “em substituição ao cinema”).

Série significa repetição, que remete a uma certa pulsão infantil, como lembra Umberto Eco. Voltamos aos episódios como quem volta a um objeto parcial de desejo, diria Freud. E mais: bons roteiros e boas interpretações ajudam, mas o que importa mesmo são as brechas e fissuras através das quais flui nossa adesão ao universo ficcional proposto.



Como somos tragados por essas “brechas”? Os especialistas falam da persistência com que são percebidos os acontecimentos contemporâneos, “lugares comuns transnacionais” que jazem “no fundo do cérebro” e povoam as narrativas, como o incontornável 9/11, a interminável guerra das drogas, as grandes conspirações terroristas que alimentam os conflitos reincidentes, como no Oriente Médio, e a insuperável Guerra Fria. 

É fácil constatar que, com o passar dos anos, as narrativas dos seriados foram se tornando mais complexas e menos lineares em sua elaboração, mas também, curiosamente, mais familiares para o público.

A identificação desejada pelo espectador passou de um único e monolítico “herói” para um conjunto diversificado e mais complexo de “heróis” - personagens que são iguais aos seres humanos e ao seu ambiente.

Saímos de uma identificação vertical, estilo “top-down”, para uma proximidade horizontal com os personagens, agora “contraditórios e bifurcados”.

A “bifurcação das personalidades” tornou-se, de certa maneira, o foco mesmo do drama. O “Presidente” Sutherland é um desses heróis bipartidos, alguém que nunca pensou em ser Presidente mas que, obrigado pelas circunstâncias “inesperadas”, encarou o desafio.

O universo ficcional se apresenta para o nosso ávido consumo simbólico como bipartido, irremediavelmente fraturado. Verdades e mentiras se sobrepõem na TV a ponto de se tornarem indiscerníveis.

Explodir o Capitólio? Acabar com a política? A recente eleição presidencial nos EUA revelou esse desejo latente na sociedade norte-americana. “Designated Survivor” sinaliza, não resta dúvida, a materialização desse desejo, pelo menos na Netflix.

Como dizia Julio Cortázar, “memória é um espelho que mente escandalosamente".

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