Blog do Sirio (*) -
Não gosto muito de argumentos que começam com "os homens são / as mulheres são", especialmente quando se trata de opções políticas ou assemelhadas. Andei lendo por aí que são os homens que querem a Dilma fora. Há muita razão nisso, a meu ver, porque acho mesmo que, se o presidente fosse homem, o golpe não prosperaria.
Também é verdade que três mulheres sustentaram de maneira muito aguerrida e competente a causa de Dilma na Comissão do Senado (que teve o discreto senador Anastasia como relator).
Não esqueçamos Kátia Abreu, que deixou suas convicções ideológicas em segundo plano e defendeu a honestidade de Dilma com o dedo na cara de uma multidão de homens suspeitos - dos cabelos pintados às contas suspeitas.
Mas houve Marta Suplicy, mulher. E houve outras na mesma casa.
Dilma pediu para ser chamada de presidenta. E agora vem Carmen Lúcia, que acaba de ser eleita presidenta do Supremo, dizendo que quer ser chamada de "presidente". E, para variar, forneceu um argumento ridículo e desinformado: "Eu fui estudante e sou amante da Língua Portuguesa".
O que quer dizer "fui estudante?" Que houve um período de sua vida em que a atividade principal foi estudar? E daí? Sorte, dona Cármen. Muita gente não tem tal oportunidade. Ou que estudou de fato (quer dizer que outros não?), e por isso ama a língua?
Deve ter faltado a alguma aula, eu acho, ou teve professor(a) pouco lido(a), porque a forma "presidenta" não é estranha à escola, quando a escola tem mesmo estudantes (e professores!).
É verdade, ressalve-se, que não disse ser amante da gramática e dos dicionários (embora talvez pense que isso está implícito. Mas, se estiver, é outra bola fora).
Já que juristas gostam de argumentos de autoridade, vamos lá. Consideremos dois dicionários de respeito. O Caldas Aulete, na edição de 1974, que é a quarta. Lá está o verbete "Presidenta". A acepção é "mulher que preside; esposa de um presidente".
Anotar que se trata de um substantivo feminino equivale a dizer que não é uma flexão de "presidente", o que se pode discutir (não é o que diria Bechara, cf. abaixo).
Mas Carmen Lúcia não deve estar ligada nestas firulas (é uma amante da língua; não quer dizer que seja uma profissional).
Vejamos agora o Houaiss. O verbete está lá: substantivo feminino
1 - mulher que se elege para a presidência de um país (grifo meu)
Ex.: a p. da Nicarágua
2 - mulher que exerce o cargo de presidente de uma instituição (idem)
Ex.: a p. da Academia de Letras
3 - mulher que preside (algo) (idem) Ex.: a p. da sessão do congresso
4 - Estatística: pouco usado. esposa do presidente
Agora, vejamos "presidente", nos mesmos dicionários:
Segundo o Houais: indivíduo que preside (algo)
1 - indivíduo que dirige os trabalhos numa assembleia, congresso, conselho, tribunal etc.
2 - título oficial do chefe do governo no regime presidencialista
3 - título oficial do chefe da nação nas repúblicas parlamentaristas
4 - título que às vezes se dá ao dono ou ao diretor-geral de uma empresa, clube, banco etc. - adjetivo de dois gêneros (1664)
5 - que preside, que dirige
Em 1, o que consta é indivíduo. Em 5, "que preside", que não marca gênero. Nos outros casos, pode-se dizer que as mulheres não estão incluídas: do chefe, o chefe, ao dono, ao diretor.
Vejamos "Presidente", segundo o Aulete digital: Pessoa que chefia conselho, tribunal, assembleia etc.: presidente da Câmara dos Deputados.
O chefe de Estado de um país que adota o presidencialismo (presidente da República). Pessoa que preside a um ato, concurso, empresa etc.: presidente da banca examinadora.
Duas acepções nem incluem nem excluem mulheres, mas a outra exclui.
Já o Aulete impresso produz o mesmo efeito (ia dizer "a mesma impressão") que o Houaiss: O que preside… Título oficial do chefe de estado… O que preside um ato…
Finalmente, vamos a "amante" (segundo o Houaiss) - adjetivo e substantivo de dois gêneros
1 - que ou aquele que ama; namorado, apaixonado - Ex.: <amado a.> <a. latino>
2 - que ou aquele que tem gosto ou inclinação por alguma coisa; amador, apreciador - Ex.: a. das artes - substantivo de dois gêneros
3 - pessoa que tem com outra relações sexuais mais ou menos estáveis, mas não formalizadas pelo casamento; amásio, amásia.
Creio que a acepção que importa (que estava na cabeça de Cármen Lúcia) deve ser a que grifei. Mas veja-se como é ambígua: ter gosto ou inclinação é como gostar de fazer poemas no final de semana aos 17 anos (poeta não tem gosto nem inclinação. Trabalha pesado. E lê tudo).
Talvez Carmen Lúcia seja amadora na questão. Então, ajuda espiar "amador" (Houaiss): entre outras coisas (não estou sonegando nada relevante) é "aquele que ainda não domina ou não consegue dominar a atividade a que se dedicou, revelando-se inábil, incompetente etc.; inexperiente" ou: "que ou quem entende apenas superficialmente de algum assunto ou atividade".
Diria, sendo legal, que, no caso, se trataria mais da segunda acepção do que da primeira. Afinal, ela não se dedicou à língua, mas ao direito. Campo em que esperamos que seja profissional.
Não citei gramáticos. Olhei diversos "compêndios". Alguns nem mencionam a palavra, mas Bechara, sim. Inclui o caso numa lista:
Alfaiate - alfaiata
Infante - infanta
Governante - governanta - também invariáveis
Parente - parenta
Monge - monja
Ou seja: se é amante da língua, devia tratar bem da palavra "presidenta". Amar, talvez.
Finalmente, cito passagem de há dois aos de uma revista semanal que publicou matéria sobre a questão: "A edição do Dicionário Houaiss consultada é de 2009, ou seja, de antes da eleição de Dilma. Mais do que isso, segundo especialistas da equipe do Dicionário Aurélio, o termo existe pelo menos desde 1872, existia no dicionário Cândido de Figueiredo em 1899 e foi incorporada aos outros compêndios do nosso idioma em 1925.
Machado de Assis, o grande escritor brasileiro, usa a palavra em seu mais do que clássico Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em 1880" (Carta Capital 29/11/2014).
O melhor tratamento da questão do gênero em português é o que sustenta que ele é marcado no artigo - ou no adjetivo. OU seja, não é na desinência ou terminação nem no final da palavra. O que explica casos como "o poeta / a poeta", "o caixa / a caixa" e outros solteiros, como "o revolver" - nada na palavra indica gênero etc.
Quando palavra designam seres animados, o meme sugere que se deveria fazer coincidir gênero gramatical e sexo biológico (hoje, menos claro).
Há duas maneiras básicas de fazer isso: uma flexão, com o em "menino / menina" (a flexão é o -a de menina; o -o de menino mereceria páginas estruturalistas - in absentia etc…). Outra é marcar no artigo, apenas. "o presidente / a presidente" é uma saída.
Quem quiser, que adote. Mas não me venha com pose de sabichona. Vai estudar!!
É obvio que "a presidente" já define gênero (eventualmente, sexo). Por isso, é claro que quem diz "a presidentA" acrescenta um traço de militância a um traço gramatical.
Mas não o inventa, como se viu.
Achar isso é ser bem amador. Ou amante, mas num sentido bem tradicional: é a outra, só tem acesso eventualmente, nas folgas.
Acho que Carmen Lúcia estudou gramática num apostilão.
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Artigo publicado originalmente no Blog do Sirio
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