"A vida é de quem se atreve a viver".


Mario de Andrade em uma exposição de Portinari
O turista aprendiz e o Patrimônio Cultural - Centenário da Semana de 22

Eu sou trezentos, trezentos, e cinquenta” Mário de Andrade

Luiz Philippe Torelly (*) -

Mário de Andrade foi um intelectual múltiplo, plural. O alcance de seu radar era vasto: literatura, poesia, música, etnografia, folclore, arquitetura, artes plásticas, fotografia, crítica literária, políticas culturais, enfim, um universo de interesses que não encontra paralelo na atualidade. Junto com outros intelectuais e artistas, participantes ou não do núcleo original da Semana de Arte Moderna de 1922, mudou a face da cultura brasileira, que passou a olhar não só para as vanguardas europeias ou estar presa aos valores tradicionais da aristocracia cafeeira, sua financiadora.

Começou a voltar-se para um Brasil que era invisível. Para manifestações culturais confinadas aos muitos sertões, que não ecoavam nos grandes centros, voltados para o velho mundo. Entre as décadas de 20 e 40 o mundo mudou muito e o Brasil também.

O modernismo nascente deu início a uma simbiose e descoberta da cultura popular, produzida por brasileiros de todos os quadrantes, que não tinham acesso à educação formal, ao cinema, aos livros e bibliotecas. Produziam sistemas próprios de expressão e criatividade, que criaram o samba, o frevo, o maracatu, o fandango, a congada, a literatura de cordel com raízes no medievo português, a arquitetura vernacular, uma culinária vastíssima baseada em produtos e receitas locais, entre muitas outras manifestações.

Mário foi uma das figuras de proa da Semana e 22, que até hoje são reconhecidas como marcos da formação cultural contemporânea. Junto com Oswald de Andrade, Villa-Lobos, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Guilherme de Almeida e até Plínio Salgado, formou o núcleo original do movimento em São Paulo. A elite paulistana ligada à indústria cafeeira, a principal atividade econômica do país na época, estava representada pela figura de Paulo Prado, autor do livro Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira e de Olívia Penteado, uma das mecenas do movimento.

O futurismo, movimento político e estético surgido na Itália, personificado na figura de Marinetti, foi uma das raízes vanguardistas ligadas ao modernismo. Polêmico, pregava uma ruptura com o passado e uma adesão à velocidade da modernidade e ao maquinismo. Identificado com o fascismo, sua influência foi se desvanecendo com a mesma rapidez que surgiu, deixando como marca um nacionalismo mais extremado na obra de alguns dos participantes como Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia e Ronald de Carvalho. 

A semana é um marco importante como uma referência, mas as ideias já estavam circulando também em outros centros. O país à época ainda não tinha uma identidade nacional, que os meios de comunicação como o rádio, ajudariam a construir.  O autor de Macunaíma, a obra mais célebre de Mário Andrade, marcou definitivamente o cenário cultural brasileiro e continua a ser uma referência obrigatória.

Um dos mais importantes livros de “descobrimento” do Brasil, escrito em forma de diário, com informalidade, humor e elevada percepção para o prosaico e o inusitado, O Turista Aprendiz narra duas viagens de Mário. A primeira, em companhia da aristocrata do café e mecenas dos modernistas Olívia Guedes Penteado, sua sobrinha Margarida Guedes Penteado e da filha de Tarsila do Amaral, pintora do célebre Abaporu, Dulce do Amaral Pinto. O périplo se inicia em maio de 1927 e dura três meses.  Do Rio de Janeiro a Iquitos, no Peru, navegando pelos rios Amazonas, Solimões e Madeira.

Na segunda viagem, Mário parte sozinho para o Nordeste em novembro de 1928, onde permanece até fevereiro do ano seguinte. É recepcionado, entre outros, por Ascenso Ferreira, Jorge de Lima, Cícero Dias e Câmara Cascudo.  O contato com a floresta e o sertão, com os diversos tipos humanos e manifestações culturais, a religiosidade, os folguedos, as danças, as músicas, quase sempre impregnadas de sincretismo e superstição, causam grande impacto em nosso “turista”, consolidando uma visão de nacionalidade abrangente em oposição às concepções regionais até então majoritárias.

O relato das viagens etnográficas, como ficaram conhecidas, reforçam valores já presentes na Semana de Arte Moderna de 1922. Valores esses que, em nosso ambiente, onde passado e presente coexistem com grande proximidade, demonstram-se paradoxais e contraditórios: ao mesmo tempo críticos das instituições e pregando a ruptura com o passado acadêmico, mas identificados com ideias liberais e conservadoras.  O resgate de um Brasil de feição mestiça e desgarrado dos padrões europeus de então, mais indígena, mais africano, mais caboclo e caipira, inicia uma nova síntese cultural que procura abarcar as múltiplas faces da brasilidade.  Tratava-se de reinventar o País a partir do seu reconhecimento e indeterminações. Não é por acaso que uma das principais obras de Mário, Macunaíma, vem à luz em 1928, entre as duas viagens. É perceptível a influência do universo amazônico na construção do livro e de seus personagens.

Como na famosa “viagem dos paulistas a Minas”, de 1924, denominada por Oswald de Andrade como a “viagem de descoberta do Brasil”, da qual além de Mário, fizeram parte Olívia Guedes Penteado, Paulo Prado, Tarsila do Amaral e o poeta suíço Blaise Cerdras - formulador de uma proposta para criação de uma instituição de proteção ao patrimônio histórico no Brasil - Mário recolheu farto material para suas formulações futuras, inclusive 902 fotos com sua “Codaque”.

Ao assumir a Diretoria do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, em 1935, nosso autor põe em prática muito do aprendizado de suas viagens. Foi uma experiência inovadora e intensa de difusão de manifestações culturais eruditas e populares, com forte viés educativo.  O que acabou por polir suas formulações para a elaboração, em 1936, do “anteprojeto de preservação do patrimônio artístico nacional” sob encomenda do então Ministro da Educação e Saúde do governo Getúlio Vargas, Gustavo Capanema.

O inovador e visionário documento de Mário de Andrade para a criação do então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) constituiu-se em referência central para a elaboração do Decreto-Lei Nº 25, de 1937, que estabeleceu o conceito de patrimônio cultural e propôs como principal instrumento o tombamento.

Conceitos como o de arte ameríndia e popular, bastante abrangentes, incluindo o que hoje denominamos de saberes, fazeres e falares, bem como o de paisagem cultural – sem ainda receber esta denominação – estão nele presentes, o que lhe confere impressionante contemporaneidade após tantos anos. As sementes lançadas irão germinar ao longo das últimas oito décadas, antecipando em vários aspectos – especialmente na dimensão imaterial – as iniciativas e convenções da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), referência internacional na preservação do patrimônio cultural, criada em 1946, bem como na “Carta de Veneza”, de 1964, cuja influência na preservação do patrimônio cultural em todo o planeta foi marcante e ainda se faz presente. 

As circunstâncias históricas e políticas que caracterizaram no Brasil a concepção de preservação do patrimônio, especialmente no IPHAN, além da ausência de outros instrumentos que não o tombamento, determinaram que as ações de proteção se concentrassem quase que exclusivamente, até os anos 1990, na identificação e na proteção de monumentos, edifícios e conjuntos urbanos de relevante interesse histórico e artístico, na denominada “pedra e cal”, no excepcional e monumental.  Os bens móveis, que desde o Brasil-Colônia, com a criação do Museu Nacional, em 1818, já recebiam certa atenção governamental, foram, antes mesmo da criação do IPHAN, valorizados pela criação de museus, como o do Ipiranga, em 1909, pelo Governo do Estado de São Paulo, e o Museu Histórico Nacional, em 1922.  A constituição de 1988, especialmente os artigos 215 e 216, iriam alterar substancialmente esta realidade resgatando concepções do anteprojeto de Mário.         

Tal política se amplia em escala após 1937, e se soma ao esforço de reconhecimento internacional por intermédio da divulgação de livros e textos de escritores estrangeiros, como o francês German Bazin, o inglês John Bury e o austríaco Stefan Zweig – autores, respectivamente, de Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil, Arquitetura e Arte no Brasil Colonial, e Brasil, País do Futuro. Esse período, acertadamente denominado de “fase heroica” coincide com os 30 anos, de 1937 a 1967, em que Rodrigo Mello Franco de Andrade dirigiu a Instituição, a ponto de simbolizar o patrimônio no Brasil, o que a tornou uma das mais importantes do mundo.      

A hegemonia modernista promove uma notável revisão de paradigmas e de ressignificação da herança cultural brasileira.  Nessa dialética tradição/modernidade é fundamental lembrar que as artes em geral e a arquitetura em particular, foram e continuam sendo, entre outras coisas, eficazes instrumentos de irradiação de ideias e conceitos.  O resgate do barroco, estilo dominante nos séculos XVII e XVIII, em especial o mineiro, até então relegado por ser considerado excessivo e trágico em sua visão de mundo e metáfora da vida celestial, valoriza aos olhos do País e do mundo um legado que, embora de origem ibérica, revela a contribuição singular de arquitetos, artistas, mestres e músicos brasileiros.  Esses, cuja maioria, mesmo ao largo de uma formação acadêmica regular, em condições muito peculiares, produziu um conjunto de realizações de grande beleza e apuro técnico. Antônio Francisco Lisboa, “o Aleijadinho”, mestres Ataíde e Valentim, o compositor José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, entre muitos outros, foram reconhecidos por autores como Affonso Ávila, Lucio Costa, Robert Smith e Lourival Gomes Machado representantes legítimos da originalidade da produção artística aqui desenvolvida. Isso, em contraste com uma cultura repetitiva dos padrões europeus que até então eram a referência de um país que iniciava sua urbanização e procurava no academicismo a sua feição civilizatória.

Transcorridos mais de 90 anos das viagens de Mário de Andrade e 85 de seu anteprojeto para o SPHAN, sobrevivem muitos paradoxos no país. Vivemos uma realidade em que a concepção de cultura e de imaginário no Brasil foram ampliadas com a incorporação das manifestações e referências populares.  Além disso, foi reduzida a importância da excepcionalidade e da monumentalidade, que ainda ocorrem em um contexto social onde as mazelas centenárias permanecem, bem como as disparidades e assimetrias interpessoais e inter-regionais, apesar da crescente modernização. São as famosas “ideias fora de lugar”, para as quais, Roberto Schwarz nos chama a atenção em seu clássico ensaio homônimo. Infelizmente, vivemos um momento inusitado e de jamais visto de violência ideológica.

O Governo Federal, desde a ascensão do regime inqualificável de Jair Bolsonaro, passa a destruir sistematicamente a estrutura de fomento e preservação da cultura e das artes, que foi duramente construída ao longo de um século. Não há paralelo sequer com as práticas nazistas adotadas pelo III Reich. Hitler, ao mesmo tempo que se declarava opositor e destruía manifestações artísticas e culturais, usava em seus propósitos autoritários, de uma estética totalitária que refletisse os ideais da raça ariana que tentava inaugurar. O governo brasileiro apenas destrói. Não tem propósito ou projeto, sequer vagas ideias por mais esdrúxulas que pareçam.

A leitura de “O Turista Aprendiz” não é a de um livro histórico, datado.  É a de uma realidade onde ainda se confrontam manifestações culturais ligadas à tradição, ao território, às relações com a ecologia, aos fazeres e saberes do cotidiano, em oposição a uma outra muitas vezes desenraizada, pois relacionada a valores exógenos, descompromissados com o cotidiano, que são próprios de uma cultura urbana mais cosmopolita, nem sempre afeita à dialética de transformação, onde a cultura assume seu papel libertador e semeador do futuro.
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(*) Luiz Philippe Peres Torelly é arquiteto e urbanista.

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