"A vida é de quem se atreve a viver".


Guilherme Cadaval: “A distribuição desigual do direito ao luto distorce nossas formas de pensar sobre a violência e a não violência. Afinal, através de qual quadro referencial classificamos algo como violento?”
Judith Butler e a não violência

Guilherme Cadaval (*) –

Foi o filósofo inglês Thomas Hobbes quem afirmou, no seu Leviatã, que, no estado de natureza, antes da formação da sociedade, os homens viveriam em constante conflito uns com os outros, resumindo tal pensamento na famosa frase: “guerra de todos contra todos”. Seria, de fato, precipitado excluir a dimensão potencial de conflito que subjaz todo laço social. Mas seria talvez igualmente arriscado acompanhar esta fantasia hobbesiana do momento de criação da sociedade civil, imaginando que um contrato, livremente aceito por indivíduos sempre autossuficientes e soberanos, foi o que bastou para por fim à violência. No mínimo, poderíamos nos perguntar: que indivíduo é esse que, sempre independente, parece já existir como adulto? E mais: que indivíduo é esse cujo gênero é sempre masculino? A fantasia da instauração da sociedade civil pressupõe, de forma oculta, uma violência inaugural pela qual se apaga a condição de dependência generalizada no princípio de toda vida humana, tomando, ao mesmo tempo, o gênero como sempre determinado de antemão.

O novo livro da filósofa norte-americana Judith Butler, A força da não violência, publicado a pouco pela Editora Boitempo  (com prefácio de Carla Rodrigues e tradução de Heci Regina Candiani), busca justamente, opondo-se à hipótese hobbesiana, colocar a tese de que “nenhum corpo pode sustentar-se por si mesmo. O corpo não é, nem nunca foi, um tipo de ser que subsiste por si mesmo”.

Com efeito, tanto quanto podemos, e mesmo devemos, pensar o potencial destrutivo de todo laço social, é também preciso pensar a interdependência radical que marca toda vida humana, interdependência que é posta de lado na fantasia da origem da sociedade. Desse modo, um dos primeiros alvos de uma reflexão crítica sobre a violência deve ser a noção de indivíduo soberano.

Mas o que precisa florescer a partir de uma tal reflexão é que a interdependência é condição necessária da igualdade. Afinal, se a “maioria das formas de violência está comprometida com a desigualdade”, uma “ética da não violência deve pressupor e afirmar o valor igual das vidas”.

Essa afirmação não é, contudo, simples. Se pensarmos que o contrato que instaura a sociedade, supostamente pondo fim à violência irrestrita do estado de natureza, de fato torna justificável uma violência mantenedora exercida no interior de um estado de direito, a crítica – e a afirmação da igualdade radical das vidas – topa com um obstáculo bastante complicado: algumas vidas são dignas de ser vividas, são, no vocabulário de Butler, “enlutáveis”, enquanto outras não o são.

Assim, uma ética da não violência precisa enfrentar o problema da “distribuição diferencial do direito ao luto”. Pois afirmar que a “igualdade se estende formalmente a todos os seres humanos é esquivar-se da questão fundamental a respeito de como o humano é produzido, ou melhor, quem é produzido como ser humano reconhecível e valioso e quem não o é”.

Essa distribuição desigual do direito ao luto distorce nossas formas de pensar sobre a violência e a não violência. Afinal, através de qual quadro referencial classificamos algo como violento? O que chamamos “violência”? Um estado pode acusar aqueles que tentam critica-lo de violência – veja-se o exemplo recente da queima da estátua do bandeirante Borba Gato em São Paulo, “crime” que sentenciou o ativista Paulo Galo a uma prisão preventiva por tempo indeterminado – enquanto vê no seu uso da força uma violência justificada e de acordo com a lei, direito inquestionável do estado de defender-se do que o ameaça.

Nesse sentido, pensar a não violência, como nos propõe Butler, significa “contribuir para a formação de um imaginário radical de direito ao luto”, de um luto que não se dê apenas com a morte do corpo, mas que seja parte constitutiva do corpo vivo, pensar toda vida – não apenas a humana – como digna de luto, tomando distância da realidade tal como ela se constitui hoje e “deixando abertas as possibilidades que pertencem a um novo imaginário político”.
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(*) Guilherme Cadaval é formado em Filosofia pela UFRJ, onde concluiu mestrado e doutorado. É autor de Escrever a mágoa: um cruzamento entre Nietzsche e Derrida.

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