Vladimir Carvalho (*) –
Li inicialmente Parceiros de caminhada, de Venício A. de Lima, com muito gosto pela cativante prosa de seu autor, e depois com insopitável gana e a sensação de quem está diante de rico e relevante testemunho, a ponto deste superar o declarado viés autobiográfico.
O volume de duzentas páginas vai bem mais além do que a pura “memória” da experiência de vida de um professor universitário. Na verdade, percorre a sua história desde lances reveladores de sua cândida infância em sua Sabará natal, Minas Gerais, nos anos de 1940, até os dias de hoje, com sua atuação como operoso didata e pensador no campo da sociologia política, respaldado em larga gama de títulos acadêmicos, dentro e fora do país, sendo o mais recente o de professor emérito da Universidade de Brasília (UnB).
Nascido numa família católica, sua formação foi positivamente marcada pelo encontro de padres que muito nela influíram, especialmente o franciscano Pedro Schumacher pela “simplicidade e a pobreza em que vivia”, dedicado inteiramente aos pobres e curtindo as árvores, as flores e os passarinhos, como um São Francisco redivivo.
Nessa fase, não faltou o contraponto das vozes da rua, na pessoa humilde de um certo João Coruja, um mendigo muito popular nas praças de Sabará, senhor de um verdadeiro glossário de cabeludos palavrões com que se defendia da molecada. Essas lembranças se misturam no seu espírito, especialmente quando olha para os pobres de seu país e têm lugar cativo em suas posições como sociólogo e professor hoje setentão.
Na Universidade de Brasília, que foi onde praticamente mais se demorou e onde construiu sua carreira acadêmica, Venício (na foto, abaixo) viveu e testemunhou os mais difíceis anos que o país atravessou depois do golpe militar de 64. É de se destacar a sua participação na luta empreendida por alunos e professores contra a nefasta e longa passagem de um capitão de mar e guerra, José Carlos Azevedo, no posto de reitor, que foi como um interventor ali da ditadura.
A sua atuação na defesa da universidade nesse período provocou surda perseguição de Azevedo para afastá-lo definitivamente dos quadros da UnB, fazendo-o purgar três longos anos em luta na justiça para não capitular. Nessa dolorosa seara, o seu livro também se eleva a uma categoria referencial daquela época e se transformará em leitura obrigatória. Uma sua leitora incondicional e discípula dileta, a hoje jornalista e crítica de cinema, Maria do Rosário Caetano, haverá de concordar comigo, inclusive porque, como ele, sofreu na pele as sanções atrabiliárias de Azevedo, em vista de suas posições nas greves de 1977.
Parceiros de Caminhada, que tem como subtítulo Reconhecimento e memória, entretanto está longe de ser o retrato de uma escalada friamente individual calcado na primeira pessoa, como a de um self made man. Pelo contrário, é um texto pleno de afetividade, de reconhecimento às amizades e aos apoios que o autor recebeu dentro e fora do país ao longo de sua trajetória; é um gesto de especial gratidão pelo que aceitou como uma dádiva. O seu natural talento, o seu empenho e a sua proverbial modéstia, por todos reconhecida, transparecem para os que têm o privilégio de com ele conviver ou privar.
Entre vivos e mortos, há uma verdadeira galeria de comparsas ou parceiros, como preferiu chamar, que pontificam nessas páginas, a começar por Paulo Freire, a quem dedicou estudo profundo de sua saga de educador excepcional. Caso do Henfil, seu colega de turma na UFMG, antes de se tornar o gênio do cartunismo nacional; de Alberto Dines, com quem trabalhou no Observatório da Imprensa durante onze anos. Figuras como a dos padres Mendes e Schumacher, incontornáveis de sua formação como guias incontestes do apostolado cristão; como os seus mestres estrangeiros, com destaque para Clifford Christians e Lawrence Grossberg; como os docentes e discentes da Comunicação da UnB, à frente o decano de todos nós , Marco Antônio Rodrigues Dias.
Todos eles, sem exceção, abrirão alas entusiasmados para esse volume tão precioso quanto fiel e necessário. Porque, com todas as intempéries que hoje nos afligem, é tempo de contar!
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(*) Vladimir Carvalho é cineasta paraibano de Itabaiana, radicado em Brasília. Foi também professor no Departamento de Comunicação da UnB. Leia mais sobre o autor desta resenha aqui