Guilherme Cadaval (*) –
Mike Davis (Califórnia, 1946) é hoje professor emérito do Departamento de Escrita Criativa, na Universidade da Califórnia. E é justamente por aí que interessa começar: pela prosa. Mike Davis é um prosador nato. O monstro bate à nossa porta: a ameaça global da gripe aviária, de 2005, com tradução publicada pela Editora Record em 2006, é um exemplo dentre tantos outros.
Ao longo de 250 páginas, muitas das quais marcadas pelos intricados debates científicos que há alguns meses povoam as colunas dos jornais diários, Davis consegue manter seu leitor engajado, como se o acompanhasse na exibição de um thriller catastrófico, sussurrando em seu ouvido enquanto a ação se desenrola em tempo real. O fato de que estejamos diante de outro vírus, que passou da ameaça à concretude e cujo palco se tornou realmente global, não subtrai a força do relato que ali se inscreve, muito pelo contrário, oferece à dramaticidade um tom tão mais ameaçador e urgente.
Estamos, hoje, dentro do livro de Mike Davis (na foto, abaixo), vivemos o seu suspense a cada passo fora de casa, a cada nova edição do noticiário. Mas, para além daquilo que talvez nos ocupe dia após dia – como a aterradora contagem de vítimas fatais e a concorrência alucinada por uma vacina e por um lugar no pódio dos salvadores da humanidade – O monstro bate à nossa porta oferece um panorama mais geral deste mundo que deu à luz, como sua obra mais própria, a pandemia da Covid-19.
Dentre as mudanças globais que mais favoreceram a evolução de novos subtipos de influenza, Davis menciona a Revolução Pecuária dos anos 80 e 90 – responsável pela produção a nível industrial de aves e gado – e a revolução industrial do sul da China, que colocou lado a lado centros urbanos densamente povoados com as centenas de milhões de aves da produção das indústrias. Sem dúvida isto contribuiu para acelerar a transmissibilidade de doenças entre espécies. Uma das consequências mais fascinantes dessa ruptura viral da barreira entre espécies, contudo, é que o antigo dualismo que separava, numa confortável hierarquia, o “humano” do “animal”, torna-se, agora mais do que nunca, completamente obsoleto: nossos destinos estão atados de modo incontornável.
Há, ainda, mais duas mudanças globais que se somam a esse caldo borbulhante. Por um lado, o surgimento das “super-cidades” do Terceiro Mundo, e as favelas que nelas emergem, com suas estruturas precárias, sua falta de saneamento básico, as quais, associadas a uma imunidade comprometida pela pobreza e pela fome, tornam as pessoas que nelas habitam hospedeiros privilegiados para o vírus. De fato, uma das condições sine qua non para uma pandemia é a densidade de hospedeiros sob condições sanitárias precárias. E não faltam matérias reportando a desigualdade na transmissão do vírus sobre o território brasileiro, que parece poupar espaços abastados, enquanto devasta bairros pobres.
Por outro lado, a ausência de um sistema de saúde pública internacional que corresponda à escala e ao impacto da globalização econômica. A saúde global é, em última instância, refém de grandes conglomerados farmacêuticos, que não têm demasiado interesse em doenças infecciosas, isto é, doenças que podem ser curadas: elas não produzem lucro. Tampouco os governantes teriam interesse em curas, uma vez que a indústria farmacêutica é uma contribuidora sempre tão generosa de suas campanhas políticas.
Este é, em suma, o enredo da catástrofe pela qual Mike Davis nos carrega, quase como se ainda a assistíssemos na tela de um cinema. Ao final do livro, enquanto recorda os thrillers de ficção científica de sua infância nos anos 50, com suas ameaças alienígenas e seus monstros atômicos ameaçando uma humanidade que sempre consegue acordar e se unir no último minuto para assegurar a sobrevivência da espécie, ele se pergunta: “Será que despertaremos a tempo?”. Parece que a porta já está aberta.
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(*) Guilherme Cadaval é formado em Filosofia pela UFRJ, onde concluiu mestrado e doutorado. Dedica-se aos estudos de Filosofia Francesa Contemporânea, especialmente as obras de Jacques Derrida, Georges Bataille e Maurice Blanchot. É autor de “Escrever a mágoa: um cruzamento entre Nietzsche e Derrida”.