Carlos Alberto Mattos (*) –
Indianara Siqueira é uma puta revolucionária. As duas qualificações são assumidas por ela com igual fervor no documentário que a vem revelando para o mundo. Indianara já passou em Cannes e em mostras nacionais e internacionais, foi lançado em cinemas na França e agora estreia em plataformas digitais. Foi dirigido por Aude Chevalier-Beaumel, francesa radicada no Brasil, e Marcelo Barbosa. A dupla montou uma habilidosa estratégia de observação para retratar Indianara e suas lutas em defesa de pessoas LGBTIA em situação de risco.
As violências sofridas por travestis e transexuais, que já deixaram muitas mortes nos anais do esquecimento, inflamam a indignação da ativista, também ela trans. Entre o medo e a militância, não teve dúvidas em escolher. Já se definiu como "vegana, anticapitalista e puta", o que não é pouco.
Sem entrevistas nem depoimentos, o filme se passa entre três lugares: a Casa Nem, fundada por Indianara para abrigar pessoas trans sem moradia; a casa onde ela então vivia com o marido na Zona Oeste do Rio; e as ruas, onde liderava a inserção dos LGBT nas manifestações contra Temer e Bolsonaro. Ela não se conforma com a exclusão desse grupo das pautas políticas progressistas, a ponto de denunciar o PSol quando teve sua candidatura a deputada estadual cancelada pelo partido. Faz questão também de incluir as prostitutas na mesma luta por direitos e reconhecimento político.
À época das filmagens, a Casa Nem ocupava um sobrado na Lapa (hoje está em Copacabana). Ali as moradoras viviam em comunidade, tinham aulas de alfabetização, divertiam-se e organizavam-se para as ações de resistência. Um aniversário de Indianara chega a ser comemorado por sua trupe nas escadarias da Assembleia Legislativa, território de luta da correligionária Marielle Franco.
Indianara é exemplar no balanço entre o perfil político e o retrato mais pessoal de sua protagonista. Indianara e o marido cisgênero formam um casal de alto astral, sem preconceitos nem hierarquia definida. O casamento deles é comemorado no meio da rua, diante das câmeras. Com suas protegidas da Casa Nem, ela mantém um vínculo meio maternal, num misto de autoridade e cumplicidade.
Como narrativa, o documentário avança rumo a momentos mais dramáticos, como a morte de Marielle, a vitória do horror nas eleições de 2018 e a ameaça de desocupação da casa da Lapa. Do passado de Indianara, fala-se pouco. Ela mesma parece desinteressada do que ficou para trás, como prova sua decisão de queimar fotos e papéis de sua vida pregressa. Fica a imagem, numa espécie de eterno presente, de uma mulher forte, objetiva e fascinante, para quem a luta sempre continua.
Indianara estreia dia 25 de junho nas plataformas digitais iTunes, Google Play, NOW, Looke, Vivo Play e Amazon. A partir de 5 de julho, em 195 países na plataforma MUBI.
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(*) Artigo publicado originalmente no site Carta Maior