Luis Turiba (*) –
Trabalho duro, exercícios, livros, poesia e música de qualidade.
Cada um de nós, à sua maneira, leva a quarentena individual e intransferível ao porto mais seguro possível, sem perder a ternura, jamais.
Ficar fechadinho em casa significa também cuidar da casa - todos somos “donas” de casa – agora e para sempre. Ótima oportunidade para crescermos.
Entre tantos trabalhos novos, este - cuidar do espaço doméstico para enfrentar juntos a pandemia - talvez seja um dos mais nobres, grandioso e até divino.
Luca Andrade, minha namorada/companheira, é taurina e excelente cozinheira, tem o dom dos bons temperos. Todo dia, ao seu lado, aprendo algo novo na cozinha. Outro dia fiz o almoço completo sozinho. Que vitória!
Varro casa, lavo pratos, panelas, copos e garfos. Passo pano no chão. Estendo roupa. Cato lixo. Passeio com a Mel – uma ronda na rua deserta - e faço exercício diário na laje, tomando muito sol e caminhando por quilômetros num pequeno quadrado, exercitando pernas, tórax e braços. Um bom exercício de ioga para a pandemia é engolir O Sol, equilibrando-o na ponta da língua e deixando-o escorrer garganta abaixo, passando pela área do coração, pulmões, timo, até chegar no final do esôfago e distribuí-lo pelo estômago, fígado, baço, etc, etc, etc.
A cabeça vai longe, o corpo agradece.
Nas horas vagas, leio livros de poesia e clássicos brasileiros – estou atravessando “Os Sertões“ com toda sua beleza narrativa. Escrevo diariamente. Componho novas canções com meu parceiro Fernandinho e postamos na Rádio Quarentena Musical, via Internet.
Ligo pros amigxs, filhxs, netxs pra trocar ideias. Estou vivo e ligado ao planeta Terra. Leio jornais, vejo telejornais e notícias na internet para acompanhar as crises politicas do governo coronabozo.
Diariamente, posto no mínimo umas cinco piadinhas safadas na rede. Fake News, jamais.
No entanto, uma das mais saborosas aventuras desses tempos tenebrosos, tem sido celebrar o que nos resta de vida.
De tempo em tempo, abrimos um bom tinto (como na foto, abaixo) chileno, português ou sul-africano, preparamos um bandejão com frios, queijos, pão integral, delícias e belisquetes leves. Brindamos e colocamos um disco (CD) para ouvir, cantar, dançar e papear.
Entre tantas revisitas musicais, três se destacaram pelo poder histórico e estético de cada um desses projetos.
Um deles, aliás, teve uma abrangência planetária no universo musical do século XX. Refiro-me ao chamado “melhor disco de todos os tempos” - Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, clássico dos Beatles - lançado em 1º de junho de 1967.
Seguimos a recomendação dos musicólogos. Bebemos taças de tinto para relembrar o álbum do quarteto de Liverpool, ouvindo na íntegra, sem pular nenhuma faixa - os quase 40 minutos de música.
Neste som encontramos a pulsação do melhor rock lisérgico com a orquestração e os arranjos do maestro e produtor George Martin, conhecido como ‘o quinto Beatles’, peça fundamental na confecção do histórico disco.
Em outra noite o banquete musical na quarentena foi a re-audição do disco-manifesto “Tropicália” com gravações e participações dos tropicalistas de primeira linha: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Torquato Neto, Gal Costa, Nara Leão, Os Mutantes, Capinam.
Duas semelhanças entre o “Sgt. Pepper” e o “Tropicália”, ambos do final dos anos 60: 1 - capas geniais que retratavam momentos de transcendência da época; e 2 - os arranjos orquestrados pelo maestro paulistano Rogerio Druprat, assim como os de Martin, trazia para o rock popular uma sofisticação clássica e requintada.
Anteontem ouvimos outro clássico, o refinado “Clube da Esquina”, movimento musical brasileiro surgido também no final dos anos 60, onde jovens músicos de Belo Horizonte fundiam inovações trazidas pela Bossa Nova a elementos do jazz, do rock e principalmente dos Beatles, além da música folclórica dos negros mineiros com recursos da música erudita e hispânica.
Deste disco destacaram-se Milton Nascimento, os irmãos Borges (Marilton, Márcio e Lô) e o pianista Wagner Tiso, principal arranjador – mais um maestro dos bons na parada. A este grupo juntaram-se musicalmente Flávio Venturini, Tavinho Moura, Toinho Horta e Bete Guedes, além dos letristas Fernando Brant, Ronaldo Bastos e Murilo Antunes.
Três discos, três lembranças, três universos musicais. “Coisas que a gente se esquece de dizer. Frases que o vento vem às vezes me lembrar."
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(*) Luis Turiba, poeta e jornalista.