"A vida é de quem se atreve a viver".


Mangueira homenageia Marielle e reescreve a história do Brasil do ponto de vista dos oprimidos. Vitória merecida.
A Mangueira encanta com sua nova versão da história

Era só o que faltava. O presidente da República, insatisfeito com as críticas que os foliões fizeram a ele em todo o país, resolve atacar os blocos de carnaval com a divulgação de um vídeo pornô. O ridículo chegou ao seu ponto mais alto. Cabe impeachment por falta de decoro público, dizem os juristas.

Mas duvido que o impedimento aconteça. O Brasil está anestesiado e tudo acaba na quarta-feira de cinzas. Vamos pra quaresma.

Mas o melhor mesmo é falar da vitória da Escola de Samba Mangueira, que encantou com sua homenagem a Marielle Franco e sua leitura crítica da história do Brasil.

Com História de Ninar para Gente Grande, a escola dá um tapa da cara desta idiotice de escola sem partido e neste governo ridículo que administra(?) o país. A Mangueira foi magistral, corajosa e radical, no sentido mais estrito da palavra.

O argumento foi contundente: “O Brasil foi descoberto e não dominado e saqueado; ao dar contorno heroico aos feitos que, na realidade, roubaram o protagonismo do povo brasileiro; ao selecionar heróis 'dignos' de serem eternizados em forma de estátuas; ao propagar o mito do povo pacífico, ensinando que as conquistas são fruto da concessão de uma 'princesa' e não do resultado de muitas lutas, conta-se uma história na qual as páginas escolhidas o ninam na infância para que, quando gente grande, você continue em sono profundo".

"Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento", diz o samba composto por Tomaz Miranda. Para ele, manifestações culturais como as que têm sido vistas no carnaval 2019 "vão ter papel fundamental para poder driblar todo autoritarismo e o conservadorismo que a gente vai enfrentar nesses próximos anos".

A Mangueira repete a ousadia da Paraíso do Tuiuti, vice-campeã de 2018 com o enredo Meu Deus, Meu Deus, Está extinta a Escravidão? No ano passado, a escola do bairro de São Cristóvão surpreendeu a avenida e cativou o público com um histórico samba de protesto contra o racismo e as sequelas da escravidão até hoje sofridas pela população negra do país. Uma das alas trazia "manifestoches", ironizando o papel manipulador da mídia e das redes sociais na formação de manifestantes que foram às ruas contra tudo e contra todos e contribuíram para que o poder e a política permaneçam sob o controle dos mesmos grupos econômicos de sempre.

Este ano, a escola do carnavalesco Jack Vasconcelos volta ao samba com crítica social, em um enredo que expõe conflito de classes e embate social. Diz trecho da letra de O Salvador da Pátria, cuja referência metafórica tem sido atribuída à história do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Do nada um bode vindo lá do interior

Destino pobre, nordestino sonhador

Vazou da fome, retirante ao Deus dará

Soprou as chamas do dragão do mar

(...)

Ora meu patrão!

Vida de gado desse povo tão marcado

Não precisa de dotô

Quando clareou o resultado

Tava o bode ali sentado

Aclamado o vencedor

A homenagem da Portela à grande intérprete da música brasileira, Clara Nunes, ficou injustamente em quarto lugar, merecia o segundo.

Mangueira - O carioca Tomaz Miranda, um dos autores do samba da Mangueira História pra Ninar Gente Grande (ao lado de Deivid Domênico, Mama, Márcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino), vê um processo de resistência se impondo ao Brasil desde a ascensão do bolsonarismo. O samba lembra, entre outros momentos da história recente, a vereadora do PSol-RJ Marielle Franco, morta a tiros, em março passado, junto com Anderson Gomes, que dirigia o carro em que foram emboscados, no centro do Rio.

Zuzu Angel é a dor de ontem, Marielle Franco é a dor de hoje. As duas estão na Mangueira para que não se esqueça, jamais.

"Acho que vai ficar mais aguda a tentativa de apagamento, de desconstrução da cultura popular, principalmente ligada às origens africanas, às manifestações culturais, religiosas e sociais verdadeiramente populares do Brasil", disse Tomaz.

"Acho que ao mesmo tempo essas manifestações vão ter papel fundamental para poder driblar todo autoritarismo e o conservadorismo que a gente vai enfrentar nesses próximos anos", pondera, admitindo que o carnaval tem seu lado conservador: "As escolas de samba não são uma coisa só. E a gente vai tentando jogar dentro desses espaços de contradição".

A jornalista Hildegard Angel, colunista do Jornal do Brasil, comemorou o convite para desfilar na Mangueira, na frente do carro dos "verdadeiros heróis de nossa História". Segundo ela, a alegoria traz, sobre livros da história do Brasil, um tributo fortíssimo aos heróis do tempo da ditadura. "Eu quis declinar, não tenho mérito pra isso. Mas o carnavalesco disse que eu passei a representar a denúncia daquele tempo. Estou comovida", disse.

Hildegard é filha de Zuzu Angel e irmã de Stuart Angel. Zuzu foi morta pela ditadura por acuar, com sua busca obstinada, o governo militar em razão do desaparecimento e assassinato de Stuart Angel.

A seguir o belo texto do samba-enredo da Mangueira:

História pra Ninar Gente Grande

Mangueira, tira a poeira dos porões

Ô, abre alas pros teus heróis de barracões

Dos Brasis que se faz um país de Lecis, Jamelões

São verde e rosa, as multidões

Mangueira, tira a poeira dos porões

Ô, abre alas pros teus heróis de barracões

Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões

São verde e rosa, as multidões

Brasil, meu nego

Deixa eu te contar

A história que a história não conta

O avesso do mesmo lugar

Na luta é que a gente se encontra

Brasil, meu dengo

A Mangueira chegou

Com versos que o livro apagou

Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento

Tem sangue retinto pisado

Atrás do herói emoldurado

Mulheres, tamoios, mulatos

Eu quero um país que não está no retrato

Brasil, o teu nome é Dandara

E a tua cara é de cariri

Não veio do céu

Nem das mãos de Isabel

A liberdade é um dragão no mar de Aracati

Salve os caboclos de julho

Quem foi de aço nos anos de chumbo

Brasil, chegou a vez

De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês.

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