Capa da edição nº 9 do Guia Musical de Brasília, lançado no último final de semana
Música do coração

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –

O ano é 2008 em Vitoria-Gasteiz, capital da província de Álava, no País Basco. Vai começar o show de Rosa Passos na 32ª edição do seu Festival de Jazz. Toda sorrisos, ela entra no palco, cumprimenta a banda, joga uma rosa vermelha para o público, estende os braços, faz o gesto das mãos postas, e canta Vatapá, de Dorival Caymmi, com seus fraseados típicos, a ginga salpicada de acentos e deslocamentos rítmicos, as sílabas prolongadas como na frase “um bocadinho maaaaaais”... A canção termina com um scating: ieeeeeeeeeeeeieeeeeeeeeieeeeieeeeiieeeeeeeeeeie…

Rosa está acompanhada de Fábio Torres (piano), Paulo Paulelli (baixo) e Celso de Almeida (bateria). Ela conversa com público, diz que é uma honra estar no evento, elogia a beleza da cidade, agradece o carinho da plateia, e segue o show com mais 15 canções – Marina Morena (Caymmi), Verbos do Amor (Abel Silva e João Donato), A Ilha (Djavan), Só Danço Samba (Jobim)…

Acontece que esse show está no YouTube e, para nossa sorte e deleite, aconteceu que uma licenciada da Universidade Federal da Paraíba, já se preparando para o mestrado, depois de concluir a graduação em Educação Musical e Canto Popular em 2014, resolveu assisti-lo por sugestão de um colega. Antes de chegar na Ladeira da Preguiça (Gilberto Gil), a 16ª canção do show, ela já havia escolhido o tema para a sua dissertação de mestrado em etnomusicologia: “A performance de Rosa Passos na canção popular brasileira”.

A minha hipótese é que a escolha dessa pesquisadora, Maria Gabriella Cavalcanti Villar, consolidou-se na 13ª canção, Morena Boca de Ouro (Ary Barroso), ou talvez na 15ª, Só tinha de ser com você (Jobim).

A dissertação de Gabriella Villar foi defendida em 2019 e publicada em livro, pela Editora Appris, de Curitiba, no final de junho de 2021, com o título Rosa Passos – Uma Artista da Criação.

Desde o início, houve uma simpatia mútua entre Rosa e Gabriela, o que facilitou a pesquisa, sem comprometer o seu rigor, garante a pesquisadora.  Mais um dado interessante é que Gabriela foi orientada por outra mulher, a Doutora Adriana Fernandes, de maneira que o trabalho foi construído sob pontos de vistas femininos.

O livro tem quatro capítulos. O primeiro é um esboço biográfico da artista, com o estudo – pioneiro em muitos aspectos – de seus caminhos profissionais, de sua relação com a indústria cultural, e da etnografia de sua performance nos estúdios de gravação e nos palcos.

Nos três capítulos seguintes, a autora analisa a performance de Rosa Passos nas apresentações de Águas de Março de Tom Jobim (álbum Eu e Meu Coração, 2003), A Ilha de Djavan (32º Festival de Jazz de Vitoria-Gasteiz) e Dunas, de Rosa Passos e Fernando de Oliveira (álbum Som de Casa).

A obra se lê com enorme deleite, ainda mais se estiver acompanhado da audição dos discos e shows de Rosinha, à disposição nas plataformas digitais.

Iniciação – Rosa Passos, caçula de cinco irmãos, nasceu em Salvador no dia 13 de abril de 1952. Aos cinco anos teve aulas de piano e chegou a tirar dez no curso de teoria musical da Escola Santa Cecília. Entre os 6 e 11 anos, ouvia o pai tocar violão e os discos de jazz que ele botava na vitrola. Aos 11 anos teve o estalo, quando a sua irmã lhe mostrou o compacto Orfeu do Carnaval com João Gilberto. Desde então ela o elegeu como guru, a ponto de ser chamada até hoje de “João Gilberto de Saias”.

Segundo Gabriella Villar, desde essa época Rosa Passos optou por estudar música sozinha. Suas primeiras aulas foram tomadas dos discos de João Gilberto e de Johnny Mathis. Foi com eles que ela começou definir a sua própria forma de cantar, de respirar, de executar a sua dicção.

Depois vieram outras influências: Johnny Hartman, Nat King Cole, Ella Fitzgerald, Carmen McRae, Shirley Horn, Billie Holiday, Nina Simone, Sarah Vaughan, Etta James, Diane Schuur, Dinah Washington, Betty Carter, Nancy Wilson e Julie London. Com essa divas, ela aprendeu os truques da “respiração/expiração silenciosa, postura intimista, uso de variados timbres, articulação rítmica, mudanças melódicas/intervalares e os scat singings/bebops”, informa Villar.

Bill Evans, Oscar Peterson e Kenny Baron também tiveram peso nas definições do seu jeito de cantar e tocar. Rosa percebeu que o piano é um instrumento muito próximo da voz e se impressionou com a capacidade desses músicos de fazer improvisações melódicas adaptáveis à sua voz.

O panteão brasileiro de Rosa Passos é extenso. Inclui Elizeth Cardoso, Dalva de Oliveira, Maysa, Elis Regina e Clara Nunes. Entre os seus influenciadores na composição estão Ary Barroso, Dorival Caymmi, Tom Jobim, Edu Lobo, João Bosco, Chico Buarque, Gilberto Gil e Djavan.

Música do coração – Rosa Passos, diz Gabriella Villar, valoriza o autodidatismo, enfatizando porém a dedicação, a disciplina, o perfeccionismo e a escuta atenta que ela imprime no estudo de todos os aspectos da música, como a levada do violão, os acordes, a melodia, o ritmo etc.

Outro grande valor seu é a intuição, “no momento do fazer, da prática, da criação”, envolvendo os arranjos, os scats, as composições. Esse seu lado intuitivo Rosa chama de “música do coração”. Pouca gente sabe, mas ela já compôs como melodista mais de duzentas canções, das quais gravou menos de 60 até agora.

O marco inicial de sua carreira foi a gravação em 1979 do disco Recriação, em parceria com Fernando de Oliveira, pela gravadora Chantecler. Com o mercado em baixa, o disco não fez muito sucesso, o que a levou a cantar na noite de Brasília, conforme contou a Gabriella Villar. A coisa deslanchou quando os filhos, Alexandre, Leonardo e Julianna, ficaram grandinhos.

Primeiro, ela cantou no Bar Amigos, na 105 Norte, com o guitarrista Helder da Silva Miranda, entre 1982 e 1984. Depois, no palco do Bar Degraus, onde conheceu o guitarrista e violonista Lula Galvão, o baixista Jorge Helder, o pianista Toni Yocatán e o baterista Erivelton Silva. No repertório, bossa nova, boleros e sambas. No final da noite, “canções mais lentas”, pro pessoal dançar. Em 1988 e 1989, ela e Lula Galvão fizeram shows no Mistura Fina.

Rosa conta que nessa época “era a cobaia de Lula de acordes”, e o próprio Lula disse a Gabriella Villar que a dupla praticava “uma mistura da música improvisada com a música brasileira”. O resultado foi a parceria que já dura quase 40 anos, Lula tendo se tornado o seu principal arranjador nas criações para voz e violão.

MPB com Jazz – Gabriella define Rosa Passos como uma “artista brasileira que une a música de seu país com a abordagem do cool jazz norte-americano”. Ao criar o seu próprio estilo de fazer música, ela alia “suas características nacionais, valorizando-as e exaltando-as em diálogo com o jazz estadunidense”.

O fato de seu estilo não ser tão comercial (uma característica que Gabriella  problematiza no livro), Rosa Passos teria feito mais sucesso no Exterior do que no Brasil, o que a tornou a artista brasileira mais conhecida lá fora, depois de se apresentar em 39 países. Provavelmente, ela seja a maior embaixadora da MPB ao redor do mundo. 

Sua carreira internacional começou com o convite da cantora japonesa Junko Kitagawa para cantar em Tóquio, em 1990. Desde então ela estourou também nos Estados e na Europa, com passagens pelos mais importantes templos da música, como Carnegie Hall, o Lincoln Center, o Blue Note e o Jaz Au Bar.

Seus discos são estudados no Berklee College of Music, que lhe concedeu o título de Doutora Honoris Causa em 2008. Ela recebeu também os títulos de cidadania de San Sebastián e Pamplona, na Espanha, e um certificado de Boston pela divulgação da música brasileira naquela cidade, habitada por uma grande colônia brasileira. 

Em 2002 Rosa foi convidada por Yo-Yo Ma para participar do disco Obrigado, Brazil, com duas faixas, Chega de Saudade e Amor em Paz, ambas de Vinicius e Jobim. O álbum ganhou o Grammy de 2003. Yo-Yo Ma disse então que Rosa era “a nova pérola brasileira na Bossa Nova”, e “a voz mais bonita do mundo”.

Entre as suas parcerias internacionais destacam-se, além de Yo-Yo Ma, o baixista Ron Carter, o saxofonista e clarinetista Paquito D’Rivera, o cantor, compositor e guitarrista Henri Salvador, o pianista Kenny Baron, o trompetista Wynton Marsalis.

Uma delícia! – Meninos e meninas, eu li! O livro de Gabriella Villar tem dezenas de outras informações sobre esse patrimônio da música brasileira que é a Rosa Passos. Como é impossível dar conta delas neste espaço, termino a resenha com uma rápida pincelada sobre uma das três canções cujas performances ela analisou.

Posso assegurar que não é preciso dominar a teoria musical para fazer uma leitura prazerosa dos três capítulos dedicados a essas análises, ainda que se percam as informações mais técnicas, sobre as harmonias, por exemplo.

Segue abaixo uma pequena amostra da maneira como Gabriella apresenta o fraseado rítmico da versão de Rosa Passos e Paulo Paulelli de Águas de Março retirada do álbum Eu e Meu Coração (2003), que pode ser ouvido no YouTube para o seu acompanhamento:

(1) Tchiptubi cunjundjundjun
      Ataque da voz

(2) tchinéééé
      Sustenta nota

(3) tchiummmm
     Sustenta nota

(4) tungondon
     Staccato

(5) tchun guié tchu djon djon tchi né
     Staccato

(6) É pau
     Staccato; deslocamento do tempo forte

(7) É pedra
     Stacatto; deslocamento do tempo forte

(8) É o fim do camin—ho
     Breve prolongamento da nota cm o fonema “min”

(9) É um resto de toco pouco sozinho
      Ataque percussivo nas sílabas destacadas

No total, são 77 os passos da análise desse fraseado, depois repetidos na análise das harmonias, com a indicação das cifras do violão.

Os passos 41, 42, 43 e 44 são apresentados assim:

(41) hummmmm
       Sustenta nota

(42) tchi tchi tchi tchu tchu tchugon tchuqueenguen tchu dum din din din din tenhum
      
Seguidos ataques; staccato; sustenta nota

(43) Tchugundjum
      
Sequência de acentuações; dinâmica decrescente

(44) iéquidjoi tchôdjôdjô tchinhé
       Mantém dinâmica; sequência de acentuações

Uma delícia! – diria Rosa Passos.

A última informação, que não está no livro: Paulo Paulelli (Filhote), o baixista que acompanha a Rosa é neto daquele Arnesto do samba do Brás, que deu o bolo no Adoniran Barbosa (Nós fumo e num encontremo ninguém…)!

 

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