Toda criança devia criar haicais para ver o mundo e a vida de maneira mais objetiva (Foto: Luiz Martins da Silva)
Ora (direis!) compor haicais

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –

Há anos tento compor haicai, também chamado haikai, hokku ou haiku, o terceto de origem japonesa, que muitos consideram o poema mais curto do mundo. É uma arte difícil, essencial, medular, imanente, despojada, antissentimental, impressionista e epifânica.

O haicaísta julga captar, e tenta traduzir em três linhas, o imo, o cerne, o âmago dos fenômenos naturais que supõe emanar de suas formas. A meu juízo é o contrário que acontece: o poeta é que projeta no Sol, na Lua, nas pedras, nos rios, nas flores e nos bichos as suas emoções e sentimentos.

Se é bem sucedido, os leitores especializados dirão que os seus tercetos têm o sabor ou o espírito do haicai (haimi), envolvendo os sensos da leveza (karumi), da impermanência (mono no aware), da graça inesperada (yūgen), da veracidade (fuga no makoto) etc, valores da complexa estética japonesa.

É preciso complicar a explicação porque os princípios mencionados no parágrafo anterior referem-se mais à escola de Matsuo Bashō (1644-1694), o maior clássico da história do haicai. Ocorre que no Ocidente os haicais são mais compreendidos e compostos pela ótica da escola revisionista da Masaoka Shiki (1867–1902), considerado o quarto clássico do gênero, depois de Bashō, Taniguchi Buson (1716-1783) e Kobayashi Issa (1763-1828).

Modo de vida – Para Bashō, a prática do haicai era um modo de vida, um modo filosófico de ver o mundo, de imergir na natureza. Ele e seus discípulos colhiam os haicais diretamente das montanhas, dos vulcões, estradas, florestas, jardins, pagodes, ao descrever as suas vivências. Sua prática poética costumava ser coletiva. Os haicaístas escreviam com base num tema previamente proposto pelo líder do grupo, e depois davam pitacos nos tercetos rabiscados pelos colegas para aprimorá-los.

Por sua vez, Masaoka Shiki, um homem da Era Meiji e da abertura do Japão para as potências ocidentais, foi fortemente influenciado por poetas europeus como Paul Verlaine e Thomas Wordsworth. Sem negar completamente os valores de Bashō, Shiki considerou que os haicais tradicionalistas estavam estagnados. Propôs então que os poetas voltassem à natureza, desta vez porém com menos espelhos nos olhos e mais imaginação, e voltados não somente para os temas da tradição. Seu modelo era o dos pintores europeus que saíam a campo com os cavaletes para retratar sem limites o que observavam, fosse árvore, ponte ou poste de luz.

Mais: Shiki reinventou o haicai e o rebatizou de haiku, concebendo-o agora como um gênero literário fixo, autônomo, equiparável ao soneto ou às trovas da poesia europeia. No lugar do trabalho coletivo, ele privilegiou a criação individual.  

No Brasil, os reflexos desse debate, baseado mais em mitos do que em fatos sobre a escola de Bashō, em leituras das criações americanas e europeias, e sem acompanhamento sistemático do estado de arte do haiku no Japão, resultaram no desenvolvimento de pelo menos duas escolas. Guilherme de Almeida, Millôr Fernandes e Paulo Leminski fazem parte da primeira escola. Paulo Franchetti, Teruko Oda e a turma do Grêmio Haicai Ipê de São Paulo integram a segunda.

Edson Iura, especialista na matéria (Cesto de Caquis – Notas sobre haicai, Telucazu Edições, São Paulo, 2021), chama o terceto da primeira tradição de Haicai Tradicional Brasileiro (HTB). O poeminha da segunda ele chama de Haicai Sazonal Brasileiro (HSB). No português brasileiro o termo haicai acabou prevalecendo sobre o termo haiku por motivos óbvios, ensina Iura.

HTB - Os haicais da primeira turma costumam ter títulos, rimas, jogos de palavras, sacadas, charadas e uma grande dose de ironia e humor. Iura lista três grandes características da escola:

- O HTB insere-se na cadeia evolutiva da literatura brasileira, como parte das conquistas do Modernismo;
- Já foi diluído o escândalo com que o Modernismo foi recebido em sua introdução;
- O Modernismo foi assimilado pela Grande Tradição Literária Brasileira (e pelos livros didáticos para o Ensino Fundamental).

Seguem dois haicais típicos dessa escola, de autoria de Millôr Fernandes:

Na poça da rua
O vira-lata
Lambe a Lua.

Viva o Brasil
Onde o ano inteiro
É primeiro de abril

Agora dois de Paulo Leminski:

a palmeira estremece
palmas pra ela
que ela merece

Esta vida é uma viagem
pena eu estar
só de passagem.

HSB – Os haicais da segunda galera seriam, segundo Edson Iura, uma ruptura com o modelo anterior, estando mais colados à tradição do culto à natureza. Tida como sendo a de Bashō, digo eu. Quase sempre retratam a época do ano em que são escritos, são mais circunspectos que os HTBs, embora graciosos, tristes, dramáticos ou trágicos, a depender do estado de ânimo do haicaísta. Evitam adornos, palavras difíceis ou “poéticas”. É de praxe compará-los com instantâneos fotográficos.

Paulo Franchetti, grande haicaísta e estudioso do assunto, diz que o núcleo da forma desse tipo de haicai é “o registro ou o despertar de uma percepção muito ampla ou intensa nascida de uma sensação”.

Na minha opinião, os haicais mais interessantes dessa escola são os compostos de duas frases em confronto, sem unidade sintática, cujo sentido é alcançado pragmaticamente por quem os lê, como acontece nas construções de tópico-comentário, comuns tanto em japonês como no português brasileiro. Em outras palavras, esses haicais costumam ser arranjos incompletos cuja solução fica a cargo do receptor.

Um exemplo do próprio Franchetti:

Até os pernilongos
Vão ficando silenciosos –
Como os anos passam…

As duas frases sem subordinação fazem todo o sentido quando o leitor se dá conta de que o poeta está falando de seu envelhecimento e de sua audição cada vez mais fraca. Essa interpretação exigiu uma ponte contextual que juntou as duas frases separadas, suprindo a quebra entre elas, sinalizada por um travessão (poderia ser um ponto e vírgula).  

Sentido aberto – No HSB o poeta evita explicitar seus sentimentos por meio de figuras de linguagem como a metáfora. Nem diz explicitamente que está sorumbático ou eufórico, preferindo descrever um determinado brilho do luar, um jeito da chuva ou um tipo de neblina para expressar a sua tristeza, alegria ou qualquer outra paixão.

Com esse truque ambiental, o haicaísta espera que o leitor possa sentir algo parecido com o que ele mesmo sente. Também por essa razão, e para que a leitura fique mais aberta, com mais possibilidades de interpretação, esses haicais dispensam os títulos, orientadores de sentidos.   

Edson Iura transcreve algumas características adotadas pelo Grêmio Haicai Ipê para os seus haicais:

- Três versos (linhas);
- Contagem em torno de 5-7-5 sílabas poéticas;
- Sem uso de título ou rima;
- Uso de palavras de estação (kigô) brasileiras;
- Culto à modéstia;
- Linguagem simples e objetiva;
- Repúdio ao sentimentalismo;
- Repúdio à metáfora;
- Prática coletiva.

Iura questiona se o HSB conquistará um lugar na literatura brasileira ou perecerá como modismo, decorrendo daqui, propõe, a necessidade de seus praticantes de provar o seu valor, consolidar a sua forma e técnica, firmá-lo como alternativa de expressão entre os gêneros literários, e, mesmo,  questionar se o modelo do Grêmio Haicai Ipê é o único capaz de alcançar os objetivos dessa escola.

O Grêmio chama a lista acima de “Mandamentos do Haicai”. Mas assim como nenhum cristão jamais obedeceu à risca os dez mandamentos, mesmo os haicaístas mais ortodoxos cometem pecados.   

Eu mesmo dispenso, no contexto de Brasília, o uso das palavras das estações tal como elas são usadas em São Paulo. O motivo é simples: aqui não temos a sucessão de primavera, verão, outono e inverno. Cotejando, temos apenas duas estações óbvias, a da seca e a das águas, conforme documentou a Missão Cruls nas duas expedições que realizou nestas paragens no final do século 19. Me parece necessária, portanto, a adoção de kigôs aclimatados ao Planalto Central. Isso para quem considere imprescindível o uso do kigô, o que também não é meu caso. Acho que às vezes basta uma alusão indireta à época do ano, um fumus boni iuris, para fazer um trocadilho com o nome do Edson Iura. 

Exercícios – Dias atrás a professora botou a turma da minha neta, a Alícia, de sete anos, para escrever haicais que serão expostos na feira literária de fim de ano. A Alícia escreveu o seguinte terceto:

Eu adoro desenhar,
mas o que eu mais gosto
é de estudar  

A professora ficou encantada, mas obviamente esse tercetinho não preenche os requisitos para ser chamado de haicai, pelo menos não na escola do Haicai Sazonal Brasileiro. Eu ofereci à Alícia uma aula de haicai, mas como ela não topou no momento, chamei o seu irmão, o Zecafonso, de onze. Depois de meia hora de papo, com a apresentação de exemplos contrastantes do Millôr e do Bashō, propus ao Zeca um teste, pedindo para ele colher da janela um tema qualquer. Ele escolheu uma palmeira. Espichando a conversa, esbocei possibilidades e ele me saiu com este haicaizinho:

Debaixo do sol
eu faço um abano com
folha de palmeira

Nota nove e meio pro Zeca! Ele se imaginou ao relento com o sol tinindo e, para amenizar o calor, projetou um leque feito de palmas, e acabou criando um belo haicai. A nota só não foi dez porque acho que ele poderia aperfeiçoar a composição com o embate das duas frases, e mais um toque de aflição, como neste exemplo:

Tantos abanadores
na copa da palmeira –
Sol de esturricar

Janelas – Da experiência com o Zeca decidi montar materiais para uma oficina de haicais para crianças. Eu mesmo tenho um punhado, e nas livrarias há muitas opções, como os de Janelas e Tempo da Teruko Oda, incluso no Programa Nacional do Livro Didático. Acabei desengavetando, porém, algumas ideias que há anos extraí dos poemas do García Lorca, algumas delas com a feição de haicais quase completos.

Eu não estou me referindo à sequência de tercetos que o poeta escreveu na escola quando tomou conhecimento do gênero no começo dos anos 20, a que deu o nome de Hai-kais de Felicitación a Mamá, nem aos haikus que ele acoplou na mesma época a alguns poemas das Suítes, como este aqui:

A lo lejos
garzas color de rosa
y un volcán marchito

Lá longe
garças cor de rosa
e um vulcão mirrado

O que eu fiz foi isolar e trabalhar trechos de outros poemas, reescrevendo-os como se fossem haicais. Os discípulos do Bashō achariam muito estranha essa prática,  mas acho que teria a condescendência do pessoal do Shiki. Como aprendiz de poeta, creio ser inevitável fazer cópias, direto da natureza ou dos livros, sempre que possível com algum grau de criação própria.

Seguem alguns exemplos surrupiados do Lorca, os trechos originais transcritos em primeiro lugar:

1)

¡Cigarra!
Estrella sonora
sobre los campos dormidos

Cigarras e estrelas
no campo adormecido –
Canções riscam o céu

2)

Los Niños

¿Quién te enseñó el camino
de los poetas?

Yo

La fuente y el arroyo
de la canción añeja

Na fonte e no arroio
se aprende velhas canções –
Caminho dos poetas

3)

Las castañas son la paz
del hogar. Cosas de antaño.
Crepitar de leños viejos,
peregrinos descarriados.

Fora do caminho
romeiros assam castanhas –
Toras velhas crepitam  

4)

¡Chopo viejo!
Has caído
en el espejo
del remanso dormido.
Yo te vi descender
em el atardecer
y escribo tu elegía,
que es la mía.

O velho choupo
caiu no espelho do remanso
que eu mirava

5)

El mar
sonríe a lo lejos.
Dientes de espumas,
labios de cielo.

O mar sorri de longe
com dentes de espuma
e lábios de céu

6)

(Los relojes llevan la misma cadencia,
y las noches tienen las mismas estrellas.)

Da minha janela,
na mesma hora, avisto
as mesmas estrelas

7)

Cayó una hoja
y dos
y tres.
Por la luna nadaba un pez.

Cai uma folha
e duas e três –
Na lua nada um peixe

Todos esses fragmentos, tirados de contexto e reinterpretados, têm o cheiro dos haicais da escola do Haicai Sazonal Brasileiro, na minha opinião, embora, a rigor, possam ser chamados de falsos haicais. Não importa, a intenção aqui é a de apresentar uma pequena mostra didática sobre a forma dos haicais.

Também acho que se parecem com haicais os tercetos seguintes, que eu pirateei de letras de canções do Tom Jobim, compostas por ele próprio e pelo Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Aloysio de Oliveira, Paulo César Pinheiro e Luiz Bonfá. Não cabe a eles, claro, qualquer responsabilidade por essa apropriação indébita e atrevida à maneira do Duchamp botando bigodes  na Mona Lisa:

1)

O vento fala
nas folhas contando histórias
que são de ninguém

2)

E as águas do rio,
aonde vão? Eu não sei –
Tão grande é o céu!

3)

É um sapo, é uma rã –
São as águas de março
fechando o verão

4)

O dia lança
serpentinas pelo céu –
Sete fitas coloridas 

5)

Um cantinho, um violão,
este amor, uma canção –
Tempo de sonhar

6)

Colhia flores
à sombra de uma palmeira
que já não há

7)

Os passos dessa estrada
sei que não vão dar em nada –
Pedras no caminho

8)

O orvalho brilha,
de leve oscila na pétala –
Ah, felicidade!

9)

Pra que tanto céu
Pra que tanto mar –
Só, na inútil paisagem

10)

Tudo terminava
na lama do caminho velho –
Brejo das Almas

11)

A fruta madura
a correnteza levou –
Ô chuva comprida!   

Pra terminar, transcrevo dois haicais meus da semana passada, inspirados na foto de uma íris azul (Neomarica caerulea) tirada depois de um toró por meu amigo Luiz Martins, que de início eu confundi com um lírio, a flor, não o Luiz:

Pingo, pingo, pingo
no telhado a noite toda –
Ah, chuvas da infância!

Há tempos não chovia
tanto a noite inteira –
Íris azul mais azul

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