Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –
Quase três séculos depois de ter sido encoberto por uma grossa camada de tinta, restauradores da Alemanha revelaram um Cupido nu no fundo da tela A menina lendo uma carta na janela do mestre holandês Johannes Vermeer.
Depois de quatro anos de restauro, a tela, agora mais detalhada e dramaticamente mais luminosa, foi apresentada ao público na exposição de dez obras de Vermeer ao lado de outros mestres da Era de Ouro dos Países Baixos, como Pieter de Hooch e Gerard ter Borch, inaugurada no dia 9 de setembro na Pinacoteca dos Antigos Mestres de Dresden, Alemanha. O evento foi prestigiado pela primeira-ministra Angela Merkel e pelo primeiro-ministro holandês Mark Rutte.
A menina lendo uma carta na janela é uma preciosidade especial entre as 35 obras-primas conhecidas de Vermeer. Escapou abrigada num túnel do bombardeio de Dresden pelos Aliados durante a Segunda Guerra, que não deixou pedra sobre pedra. Foi levada pelo Exército Vermelho para a União Soviética e devolvida em 1955 para os alemães.
A figura do Cupido aparece em outros quadros do pintor, mas neste, especificamente, o moleque está pisando uma máscara de teatro, o que abre novas interpretações para o quadro. O que significaria o gesto do pequeno deus? O fato de o amor superar obstáculos, como a hipocrisia, o engano, a desonestidade? A carta que a moça lê seria do noivo dela ou de um amante?
Historiadores e especialistas nas artes da Holanda sempre caem na tentação da hipótese de Vermeer (1632-1675) ter conhecido o filósofo Bento de Spinoza (1632-1677), seu contemporâneo, separado dele por apenas 70 quilômetros. A hipótese ganha força com o fato de Spinoza ter sido um polidor de lentes de telescópios e microscópios, o que seria de grande interesse do pintor, que, segundo outra hipótese, teria usado uma espécie de camera obscura para projetar imagens sobre as telas para garantir sua fidelidade naturalística.
Verdadeira ou não a elucubração, muitos entendidos garantem que as obras de Vermeer têm uma visada imanente como a do filósofo, em que os olhos devoram o mundo não de uma janela mas desde dentro, no meio dele, colados a ele, como diz Marilena Chauí. Uma perspectiva bem diferente da dos pintores italianos, que contemplavam o mundo como se os olhos fossem espelhos.
Por outro lado, os italianos tinham a figura masculina como centro e medida da razão e da proporção. Para Vermeer, em contraste, a mulher comum, doméstica, é a figura central, e mais, a mulher autossuficiente, sem crianças por perto, surpreendentemente, como anota Svetlana Alpers em Arte da Descrição.
Filósofos e pintores nos ensinam a ler o mundo de maneiras diferentes, abrindo e fechando possibilidades!