Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –
A quarta-feira, 24 de março, amanhece ensolarada, mas logo eu mesmo fico turvo com a notícia da morte por Covid do companheiro Haroldo Lima (81). Eu estava preparado. Na véspera, o Paulinho Guimarães, advogado do PCdoB, me havia alertado da piora de seu quadro clínico. Ainda assim não foi menor o baque.
A essa altura, meio-dia, os jornais já recolheram os principais fatos da brilhante trajetória desse raro patriota, lutador das causas populares e do socialismo, que até há poucos dias continuava ativíssimo na militância, escrevendo artigos e gravando vídeos de análise da conjuntura e de combate ao governo fascista do Bolsonaro.
Relembro aqui alguns episódios que juntos compartilhamos, dos quais muito me orgulho.
A primeira vez que tomei conhecimento do Haroldo foi na penúltima semana de dezembro de 1976, quando li na revista Veja a notícia da Chacina da Lapa, perpetrada na semana anterior pelo II Exército em São Paulo com o objetivo de exterminar a direção do PCdoB. Haroldo tinha sido preso pelos militares junto com outros quatro camaradas, Aldo Arantes, Elza Monnerat, Wladimir Pomar, Joaquim Celso de Lima e Maria Trindade. Muito tempo depois, fui saber que o camarada João Batista Franco Drummond, nome de guerra Osvaldo, meu contato do partido em Anápolis, Goiás, tinha sido trucidado pelos torturadores.
Anos depois, em 1983, conheci o Haroldo pessoalmente, na Câmara dos Deputados. Ele havia sido eleito no ano anterior, pelo PMDB, com o PCdoB ainda na clandestinidade. Na primeira suplência de um mandato de deputado federal por Goiás havia ficado o meu conterrâneo Aldo Arantes, com o apoio da campanha que fizemos em seu nome em Brasília e no Entorno, eu, Adelite Moreira dos Santos, Beth Alves, Moacyr de Oliveira, Fernando Tolentino, Jaime Sautchuck, Thâmar Dias, entre muitos e muitas outras.
Haroldo e Aldo integrariam a Tendência Popular do PMDB, organizada desde 1979, da qual faziam parte os deputados baianos Élquisson Soares e Chico Pinto (esse, meu ex-chefe como diretor da sucursal de Brasília do jornal Movimento), o futuro governador da Bahia Waldir Pires, o socialista Almino Affonso, parlamentares do antigo Grupo Autêntico do MDB, neo-autênticos etc. Alguns membros do grupo, como Airton Soares e Freitas Diniz, filiaram-se ao PT, fundado em 1980, mas a maioria permaneceu no PMDB, com a perspectiva de criar um Partido Socialista. Mais tarde foram identificados como “o PMDB do Miguel Arraes”, em oposição ao “PMDB do Tancredo”.
Na Constituinte de 88, Haroldo Lima se destacaria pela clareza e firmeza de posições em favor dos interesses nacionais e populares.
Esteve na linha de frente, por exemplo, da defesa dos direitos originários dos povos indígenas. Graças a uma articulação liderada por ele, pelo deputado Plínio de Arruda Sampaio (PT) e pelo senador Jarbas Passarinho (PDS), a Assembleia aprovou o Capítulo VIII (Dos Índios) da Constituição Federal, uma das legislações mais avançadas do mundo na regulação dos direitos dos povos autóctones. Ele guardava com muito carinho uma gravata cerimonial do povo Xavante, que lhe foi presenteada pelo cacique Mário Juruna, o primeiro presidente da Comissão do Índio, instalada na Câmara dos Deputados graças aos seus esforços.
Haroldo foi também dos raríssimos parlamentares (um outro foi o deputado José Genoíno, do PT) a lutar pelo caráter laico do Estado brasileiro. Opôs-se bravamente à menção de Deus no preâmbulo da nova Constituição Federal e ao sequestro das instituições brasileiras pelo proselitismo religioso.
Logo depois da Constituinte, eu trabalhei uma temporada como assessor de Comunicação do PCdoB na Câmara dos Deputados, quando Haroldo era o líder. O que mais me espantou na época, a mim e à minha colega de assessoria, a socióloga Marilda Soares, que havia trabalhado na liderança do PT, foi a liberdade que tínhamos para expressar as nossas opiniões. Participávamos das reuniões da bancada como pares, não como empregados. Como o Haroldo sempre falava muito alto, e eu também, às vezes as nossas discussões pareciam altercações. Aprendi muito sobre democracia com o companheiro.
O Haroldo costumava me chamar de “Baixinho”, como fazia com os amigos mais próximos. Em contrapartida, por causa de nossa afinidade com a República Popular da China, eu o chamava de “Camarada Li Ma”. Com seu elegante bom humor, ele achava aquilo uma farra.
Haroldo tinha grande admiração por Lampião, o rei do Cangaço, e sempre estava à cata de novidades bibliográficas sobre a figura. Mas figura impagável mesmo, inclusive de sangue azul, é o próprio Haroldo.
Parece brincadeira, pouca gente dá por isso, mas o Haroldo Lima tem ascendência aristocrática. Ele é bisneto do primeiro governador eleito da Bahia (1892), Joaquim Manuel Rodrigues Lima, filho de Rita Sofia Gomes de Lima, irmã de José Antônio Gomes Neto, o Barão de Caitité. Ou seja, é tataraneto do Barão. Por isso mesmo, nós, os amigos, e também os inimigos, o chamávamos de Barão Vermelho.
Havia um precedente: o cineasta Luchino Visconti (Rocco e seu Irmãos, Morte em Veneza) era conde e também foi comunista.