Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –
Depois de remeter o poeminha abaixo para uma lista de amigos do Zap, recebi de um deles, o músico e compositor Arturo Sampaio, um elogio em forma de dúvida retórica: “Por que a segunda estrofe funciona tão bem”? A pergunta me provocou algumas respostas imediatas e a seguir outras indagações, o que me levou a estudar o poema de maneira mais aprofundada. Aqui vão algumas conclusões, parciais e provisórias, que no mínimo servirão como dicas para a leitura de poesia.
À primeira vista, pode parecer que sendo eu o autor, dotado da “vontade do constituinte”, e sendo o seu primeiro leitor, o poema me seria inteiramente transparente. Não é bem assim. No ofício de compor escritos poéticos, é claro que eu tenho educado o ouvido para encontrar as frases sonoras que me parecem as mais adequadas, e, com a prática da escrita jornalística de muitas décadas, tenho a pretensão de manter grande controle sobre os textos agora derivados muito mais da imaginação. Ainda assim, sempre me surpreendo com certos efeitos após a festa, sem o privilégio da interpretação, como acontece com os demais leitores.
Cabe de início a observação de que os meus poemas, em geral, frequentam algumas faixas acima do nível das “batatinhas quando nascem”. A sua compreensão exige certa cultura literária e algum esforço exploratório, embora estejam longe de serem textos crípticos ou “poesia para poetas”.
Também devo registrar que não acredito em mistérios da Natureza que não possam algum dia serem desvendados. Em literatura, os enigmas, pelo menos aqueles não engendrados por escritores “automáticos” ou “sintomáticos”, são sempre construídos por deliberação do autor, às vezes para “dar trabalho aos estudiosos”, como fez o James Joyce, inspirado por algum espírito lírico-sádico. Assim, um poema mais ou menos complexo sempre é lido em confronto com as referências do repertório cultural do autor e de sua época etc.
Vamos ao poema:
Sem rosto nem mão,
pedestal, vela
ou genuflexório –
Um deus entre aspas,
positivo porém
como o Universo –
Alheio a crenças,
sua mente sem cancelas
demanda sondagens –
É tão bela como o binômio
de Newton ou a fórmula
da equivalência –
A gente vara a noite lendo a Ética
e amanhece em estado de graça –
Atenção - Com um mínimo de atenção, quem acaba de ler o poeminha notará algumas características formais:
1) Não tem título: o propósito é deixar mais aberta a interpretação;
2) É composto de duas estrofes de seis linhas mais um dístico final;
3) Tem versos irregulares de quatro, cinco, seis, sete e oito sílabas, sem rimas, exceto na segunda estrofe, com a rima da primeira com a última linha, e uma conspícua rima interna (cancelas/bela); os versos do dístico tem dez sílabas;
4) É um texto rico de assonâncias (repetição de vogais) e aliterações (reiteração de consoantes e sílabas);
5) Há duas citações importantes no poema: o uso de colagens de empréstimos alheios é comum na poesia.
– A primeira citação está nos dois versos finais da primeira estrofe, “positivo… como o Universo”, e foi inspirada num verso do início de um poema de Emily Dickinson que trata da eternidade:
This World is not Conclusion.
A Species stands beyond –
Invisible, as Music –
But positive, as Sound –
Este Mundo não é Conclusão.
Encontra-se uma Espécie além –
Invisível, como a Música –
Mas positiva, como o Som –
– A segunda, na frase “É tão bela como o binômio de Newton”, surrupiada de um poeminha de Fernando Pessoa-Álvaro de Campos:
O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.
óóóó — óóóóóóóóó — óóóóóóóóóóóóóóó
(O vento lá fora).
Assuntos - O conteúdo do poema, por sua vez, pode ser evidenciado com um mínimo de esforço por qualquer pessoa que tenha frequentado algumas aulas de filosofia no 2º Grau: a) a descrição do “Deus” do filósofo luso-holandês Bento de Spinoza (1632-1677), autor da Ética; b) um comentário sobre a mente desse “Deus”, aberta à exploração; e c) o registro do efeito causado pelo livro sobre o estado de ânimo do leitor.
Entre aspas - Para relembrar: o “Deus” de Spinoza é um deus entre aspas porque não é uma pessoa dotada de vontade ou arbítrio como o Deus dos judeus, dos cristãos e dos muçulmanos. Não é um sujeito transcendental criador do mundo ex nihilo (a partir do nada), com ordem, harmonia ou finalidade. Por esse motivo não tem rosto nem mão, e não está assentado sobre um pedestal cercado de velas votivas. Diante dele não há qualquer móvel especial dotado de um estrado almofadado (genuflexório) para que os fiéis ali se prostem ajoelhados para adorá-lo.
Esse deus entre aspas é, no entanto, “positivo como o Universo”, porque, segundo Spinoza, é a substância única, indivisível, infinita, causa imanente da contínua, dinâmica e reiterada produção do Universo ou Natureza. É imanente porque se refere a tudo o que existe concretamente. Não é transcendente porque não se localiza na fantasia, produto da imaginação, de algum universo paralelo transcendental. O sobrenatural existe, mas apenas como ficção mental.
Leis naturais - Já se disse que esse deus não é uma pessoa nem é objeto de adoração (“alheio a crenças”) e agora se diz, paradoxalmente, no segundo verso da segunda estrofe, que ele tem uma mente, e que essa mente não tem “cancelas”, é aberta. Como assim? Segundo Spinoza, a Natureza, continuamente produzida por esse deus-substância, é uma expressão dinâmica dele, submetida às suas leis necessárias. Que leis são essas? Em termos modernos, podemos dizer que são as leis e teorias científicas em geral, como a lei da gravidade e as outras leis da física e da química, a teoria da evolução darwiniana-mendeliana, os estudos sobre os vírus, a psicologia, a linguística, a ciência política etc etc.
Importante: o nosso filósofo considera que tudo o que existe é natural, incluindo os pensamentos e os outros processos mentais. Os fatos culturais, ditos imateriais, são naturais também. Além disso, a espécie humana não ocupa qualquer lugar privilegiado no seio da Natureza, não podendo estabelecer aqui nenhum “império dentro do império”. Nisso o spinozismo é compatível com o darwinismo. E, cá entre nós, a ideia de Marx segundo a qual a história humana é um capítulo da história da Natureza tem como surça o Spinoza!
Ora, por meio dessas leis, ferramentas da razão, a gente pode desvendar ainda que de maneira aproximada os segredos (provisórios!) da Natureza. Ou seja, a gente pode penetrar a mente de “Deus”. Os spinozistas costumam dizer que não acreditam em “Deus” mas, sim, que podem conhecê-lo, na medida em que desvelam a sua mente. Daí o motivo das menções no poema ao binômio de Newton e à fórmula da equivalência de massa e energia (E=mc²), proposta por Albert Einstein, notório spinozista de carteirinha. Ah, sabe o Georg Cantor, formulador da teoria dos conjuntos e do número transfinito? Pois é, ele se inspirou nas ideias do infinito do Bentinho!
O poema refere-se ainda ao irrecusável “convite” da mente de “Deus” às sondagens, às investigações de suas entranhas, e a diz bela. Problema: se Spinoza escreve que o belo não está no objeto observado e sim nos sentidos do sujeito que o observa, como pode a mente de “Deus” ser considerada bela de maneira assim tão rápida e taxativa? Uma resposta está no dístico final do poema: depois de passar a noite lendo a Ética, que o ajuda a compreender a Natureza e a mente de “Deus”, o leitor do livro amanhece em estado de graça. Isto é, num estado de “beatitude” (termo spinozano), pois terá dado alguns passos a mais na direção da suprema alegria possível, aquela provocada pelo conhecimento de “Deus”. Spinoza chama isso de amor intellectualis Dei, o amor intelectual ou racional a Deus.
Antes de terminar o comentário, que já vai longo, proponho voltar ao poema para lhe acrescentar mais sentidos derivados da vocalidade. É isso, a sua leitura em voz alta ajuda a perceber o que vou dizer agora.
Sinos - Como estamos falando de Deus, com e sem aspas, querendo ou não, figuramos sincreticamente um ambiente religioso, e logo imaginamos igrejas e torres de catedrais com sinos badalando. Imagine a leitora e o leitor que o sol está acabando de nascer perto das seis horas da manhã...
Ouvem-se as badaladas logo no primeiro verso da primeira estrofe, anunciando o romper do dia. É a primeira hora da liturgia católica, a laudes (antiga prima): Sem rosto nem mão... Bem! Bem! Bão! Ouviram?
Os sinos continuam dobrando no terceiro verso (genuflexório), no quarto (entre), no quinto (porém) e no sexto (como). E ainda no primeiro verso da segunda estrofe (crenças), no segundo (mente… cancelas), no terceiro (demanda… sondagens), no quarto (tão… binômio), no quinto (Newton) e no sexto (equivalência). Por fim, soam no primeiro verso do dístico (gente… lendo) e no segundo (amanhece em).
Vinte e um toques ou notas bimbalhando ao longo do poema!
Mais dois detalhes:
1) A rima frouxa de “aspas” do quarto verso da primeira estrofe com a “graça” do último verso do dístico provoca uma ressonância significativa: o conhecimento desse “deus entre aspas” é capaz de deixar o leitor da Ética “em estado de graça”, como já dito antes! A ignorância ou a falta de conhecimento do que acontece na Natureza, ao contrário, pode nos levar ao pânico…
2) O jogo da palavra “vela” do segundo verso da primeira estrofe com o verbo “varar” do primeiro verso do dístico: ninguém precisa oferecer velas ao deus entre aspas spinozano, e é curioso que a luz da Ética, o livro que inspirou a corrente radical do Iluminismo na Europa, permite ao seu leitor materialista varar a noite, isto é, combater a escuridão do obscurantismo.
É a primeira vez que uso a palavra materialista neste texto. O motivo é que a filosofia de Spinoza, tendo sido considerada monstruosamente ateísta por muitos de seus críticos, pode sem dúvida ser considerada materialista, na mesma perspectiva de sua filosofia ancestral, a de Epicuro (341 a.C.— 271a.C.). É o que ensina a professora argentina Mariana de Gainza. No epicurismo, os deuses haviam criado o mundo mas dele se desinteressaram, refugiando-se nas esferas dos intermundos para gozar férias eternas. O mundo então continuou a se recriar por meio das metamorfoses, como narra Lucrécio, o grande poeta epicurista, no livro De Rerum Natura (Da Natureza das Coisas).
Já no spinozismo, “Deus” é a razão constituinte do universo concreto e dinâmico, cuja existência-essência tem a sua causa-razão em si mesmo, não sendo essa atribuída ou outorgada por nenhum espírito ou sujeito transcendente. Spinoza usou uma palavra da tradição filosófica para designar “Deus”, porém com um sentido inteiramente novo, heterodoxo, subversivo. Na verdade, desmantelou o antigo conceito da divindade. Por isso se diz, repito, que esse deus é entre aspas.
Filho de uma família de comerciantes judeus de origem portuguesa, Spinoza foi excomungado de sua sinagoga ainda muito jovem e, depois, rejeitado, como uma peste epistemológica, antes e depois de sua época, por filósofos da tradição, autoridades judias, católicas e protestantes, e também supostos materialistas pretensamente dialéticos, mas preguiçosos, que ainda hoje o veem como rabino, padre ou pastor, escorados na letra do nome, agora com outro significado, mas nem de perto respaldados na compreensão do seu espantoso conceito de “Deus”.
Declinação - O dublê de jornalista & poeta que daqui vos fala urbi et orbi declina, a despeito dos vestígios contrários, de qualquer disposição de refrega em torno de questões da religião, que reputa como um antro da superstição, na expressão do Spinoza. Acha, no entanto, que não é preciso acrescentar às divergências que nos separam mais bizantinices teológicas e discórdias em torno da ontologia. Ao contrário, a gente que é do campo democrático e popular necessita urgentemente encontrar pontos de convergência, para sermos capazes de sair do buraco em que o País caiu depois de ser empurrado por um bando de golpistas, adivinhem em nome de quem! Em nome do Deus da tradição, “acima de todos”, da Pátria über alles, e da Família (temos que achar um canto pra enfiar a “família”). O Spinoza classificaria esses desgraçados como bárbaros da pior espécie (ultimi barbarorum).
Para ambientar o clima de estado de graça a que o eu lírico chega ao final do poeminha em tela, faço agora a sugestão da sua leitura com o acompanhamento do Largo do Concerto para Teclado nº 5 em Fá Menor BWV 1056 do Bach, uma das peças mais bonitas do repertório, na minha opinião. Esse movimento pode ser ouvido aqui O concerto integral pode ser ouvido aqui
Há uma segunda razão, dessa vez político-ideológica, para a escolha dessa peça do Bach. (Para mudar de assunto, dou aqui um salto tripo mortal carpado que nem faz o átomo de Epicuro!)
Lá vai: o Spinoza disse que o único mandamento relevante de qualquer religião verdadeira é “amar o próximo”, princípio obviamente válido para qualquer sistema ético, seja de religiosos, agnósticos, ateus ou materialistas. Ora, o Bach já havia utilizado o tema do Largo do Concerto nº 5, na tonalidade de Fá Maior, na Cantata BWV 156, Ich steh mit einem Fuß im Grabe (Já tenho um pé na tumba). O texto da cantata foi baseada nos versículos 17 a 21 do capítulo 12 da Carta aos Romanos, de condenação da vingança e conclamação ao perdão dos inimigos; e nos versículos 1 a 13 de Mateus 8, em que se conta a história da cura do leproso pelo Cristo. A peça enfatiza, portanto, o valor do conselho de “amar o próximo”.
A leitura musicada do meu poema, seguida de algumas reflexões sobre a solidariedade, é a minha sugestão de programa cultural para a passagem do 1º de Janeiro, Dia da Fraternidade Universal!
Referências:
1) Marilena Chaui: A Nervura do Real, Imanência e Liberdade em Espinosa, Volume I (1999) e Volume II (2016), Companhia das Letras, São Paulo
2) Mariana de Gainza: Espinosa – Uma Filosofia Materialista do Infinito Positivo, 2011, Editora da Universidade de São Paulo.