Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –
Amanheci cantando com a Simone um antigo samba-enredo da União da Ilha do Governador:
Como será o amanhã
Responda quem puder (bis)
O que irá me acontecer
O meu destino será como Deus quiser
Como será o mundo depois da pandemia do coronavírus é a pergunta que o mundo inteiro está se fazendo, desde os filósofos de todas as escolas até aquele senhor do churrasquinho de gato que o BolsoNero encontrou na Feira da Ceilândia.
Alguns filósofos costumam ser muito pirados. O italiano Giorgio Agamben, velho e cansativo arauto da necropolítica derivada do contubérnio de Heidegger com Foucault, disse que a pandemia foi inventada pelos políticos e pela mídia para a instauração do Estado de Exceção.
Em artigo publicado no dia 26 de fevereiro, no jornal Il Manifesto, Agamben disse que as medidas de emergências tomadas pelo governo italiano eram “frenéticas, irracionais e totalmente imotivadas”, uma vez que a infecção associada à “suposta epidemia” estaria causando “sintomas leves/moderados (um tipo de gripe) em 80-90% dos casos”. Disse mais, citando dados preliminares do Consiglio Nazionale delle Ricerche (Conselho Nacional de Pesquisas): “Em 10-15%, pode se desenvolver uma pneumonia, cujo decurso é benigno na maioria absoluta. Estima-se que apenas 4% dos pacientes necessitem de hospitalização em terapia intensiva”.
Cremação - A relaxada iniciativa do governo italiano, com base nesse tipo de raciocínio, deu no que deu! Mais de 100 mil infectados e mais de 12 mil mortos. Na média mundial, perto de 4% dos infectados estão morrendo. Neste momento, perto de um milhão de pessoas está contaminado e mais de 40 mil já morreram. Quando o número de infectados atingir 10 milhões, serão 400 mil mortos. Se o contágio chegar aos 100 milhões de pessoas, os sistemas hospitalares estarão colapsados e o mundo terá de enterrar ou cremar quatro milhões de seres humanos.
Aos filósofos como o Agamben, também adepto da teoria da “gripezinha” ou do “resfriadinho”, obviamente falta a chamada dialética ou, no mínimo, algum raciocínio aritmético!
Outro filósofo, o esloveno Slavoj Žižek, vai na direção oposta. Segundo ele, a pandemia transtorna o sistema capitalista de tal maneira que estamos diante de uma oportunidade “para repensar as características básicas da sociedade na qual vivemos”. Escreveu Žižek no final de fevereiro: “Especula-se que o coronavírus pode levar à queda do regime comunista chinês, do mesmo jeito que a catástrofe de Chernobyl foi a gota d’água que levou ao fim o comunismo soviético (como o próprio Gorbachev admitiu). Mas existe um paradoxo nesta situação: o coronavírus também nos levará a reinventar o comunismo, com base na confiança nas pessoas e na ciência”.
Pessoalmente, acho simpáticas as considerações do Žižek, embora seja cético quanto ao alcance prático do seu wishful thinking.
Permafrost - É verdade que vamos tirar da crise muitas lições para evitar o aquecimento global e suas consequências, como a inundação de grande parte da orla marítima, a multiplicação de doenças transmitidas por mosquitos, o desprendimento de bactérias e vírus desconhecidos do permafrost em processo de derretimento etc. (Permafrost é um tipo de solo composto de terra, gelo e rochas antes permanentemente congelado da região ártica).
Ficou demonstrado, por exemplo, que o menor tráfego de automóveis e o desligamento de fábricas, como se viu nas últimas semanas, resultou na queda significativa da emissão de dióxido de nitrogênio, um dos principais poluentes da atmosfera. Mas quem garante que depois da pandemia os carros a gasolina serão trocados rapidamente por carros elétricos? Quem garante que a indústria adotará de imediato novas tecnologias antipoluentes?
E o que acontecerá com a economia? Será retomada segundo um gráfico em forma de V, de maneira rápida, ou em forma de U, de forma lenta? E o que acontecerá com a globalização, as redes de trocas de bens e serviços em escala mundial? E o neoliberalismo, será enterrado junto com as vítimas da pandemia? Está cedo ainda para ter respostas que não sejam chutes.
À maneira dos filósofos, estou pensando no que acontecerá com o seu Zé do churrasquinho de gato lá da Ceilândia. Durante três meses ele vai receber o coronavoucher emergencial de R$ 600,00 aprovado nessa segunda-feira pelo Congresso Nacional. Talvez tenha a sorte de também receber algumas cestas básicas nesse período em que estará lutando pela sobrevivência. Mas, e depois da crise, que certamente vai demorar mais de três meses? Emprego o seu Zé não vai conseguir. O IBGE acaba de informar que a taxa de desemprego no país subiu para 11,6% no trimestre encerrado em fevereiro, atingindo 12,3 milhões de pessoas. Se a coisa já vinha piorando antes da pandemia, imagine agora!
Experimento mental - Continuo com uma dose de aflição o meu Gedankenexperiment (experimento mental): o filho do seu Zé, que tem moto, voltará a entregar comida pelo iFood; o outro filho, que tem carro, vai continuar carreando gente pelo Uber; a filha voltará a trabalhar no “salão de estética”; e o genro do seu Zé, que é pastor, retornará às pregações na Igreja Triangular do DNA do Espírito Santo de Ceilândia. Alguém aí imagina outro amanhã para essas pessoas?
Termino a pensata em forma de U, lentamente, não sem antes dar uma risada ao lembrar dos amigos e amigas de esquerda que estão ironizando os economistas neoliberais que, supostamente, teriam aderido ao pensamento de Lorde John Maynard Keynes para defender a adoção da renda básica. Que bobagem, essa renda básica aí não tem nada a ver com o Keynes. Tem a ver, sim, com o Milton Friedman, da mesma escola de Chicago do Paulo Guedes, onde o Al Capone foi quem menos matou!
A renda básica deduzida das teorias do João Maynard, com o objetivo de combater a desigualdade, funciona na verdade como complementação do salário de uma pessoa já empregada. A teoria do pleno emprego de Keynes chega ao ponto de prever, idealmente, uma jornada de apenas 15 horas de trabalho para viabilizar o regime do emprego para todo mundo, supondo o pleno desenvolvimento das forças produtivas etc. Já o neoliberalismo de Friedman não tem qualquer compromisso com o pleno emprego. É a lei da selva e do “salve-se quem puder”, do empreendedorismo, do patrão de si mesmo!
A renda básica do Friedman, em contraposição à dos keynesianos, responde a um cálculo mais frio e instrumental. Os neoliberais raciocinam que a extrema pobreza custa muito caro: é fonte de pestes, doenças mentais, aumento da delinquência, surtos de violência e, pior, de rebeliões. Como esse modelo não inclui o emprego para todo mundo (mesmo com o exército de reserva para deprimir os salários), um jeito simples de controlar as revoltas sociais é comprar o bom comportamento dos miseráveis com alguns trocados.
Estado & Capitalismo - Para Keynes, ao contrário do que pregava Friedman, nunca existiu, não existe e jamais existirá capitalismo sem o braço forte e a mão amiga do Estado, visíveis e transparentes. Isso ficou demonstrado com o New Deal do presidente Franklin Delano Roosevelt, nos anos 30; com o Plano Marshall na Europa na segunda metade dos ano 40 na Europa; e com o Tarp, o Programa de Alívio de Ativos Problemáticos, de socorro aos bancos, imposto pelo presidente George W. Bush após o crash de 2008. A diferença é que os dois primeiros programas contemplaram os interesses dos bancos e do povo; o terceiro, só os interesses dos bancos, como se pode ver na comédia A Grande Aposta de Adam McKay (tem no Netflix).
Está na hora da esquerda imaginar um amanhã diferente do status quo, muitas léguas além da ajuda emergencial absolutamente necessária para espantar a fome de milhões de pessoas durante a pandemia do coronavírus. Quem sabe algum socialismo? Muito ousado? Quem sabe algum Estado do Bem Estar Social, parecido com o do pós-guerra na Europa, a começar pelo reforço do SUS e das agências de pesquisa científica para enfrentar as próximas pandemias?
Como será o amanhã
Responda quem puder (bis)
O que irá nos acontecer
Nosso destino será o que a gente quiser