Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –
Dia desses encontrei no metrô uma senhora de seus 47 anos com aparência de 68, grisalha, cardigã negro, colar nambikwara de algodão com dentes de onça, unhas encardidas de tabaco. Falante, ela puxou conversa e logo supus que fosse antropóloga ou professora de francês, pelo jeitão existencialista. Sem papas na língua essa Gorette, a não ser quando falou en passant do filme do Fernando Meirelles. Desceu o cacete no Bolsonaro, na Damares, na Regina Duarte e até no Ibaneis. Só não desfiou todo o rosário porque teve que saltar na estação da 108. Antes de dar tchau, exclamou: “Alguém precisa contar a história da visita do Diabo a Brasília”!
Em vez de rir, senti um calafrio percorrendo os nervos ciáticos calcanhar acima. Logo eu, um materialista encanzinado! De enxofre me lembrei do Mestre, da Margarida, do Ivã Sem Teto, Woland, Behemote, a turma toda do romance do Mikhail Bulgakov sobre a visita do Demo a Moscou nos anos 30. Me assaltou um misto de curiosidade e angústia: e se o Capeta estiver mesmo passando uma temporada em nossa Capital, como aconteceu na ficção do escriba russo?
Smoking gun - Indícios para calcar essa terrível hipótese sobejam e abundam nesses 400 e tantos dias desde que tomou posse o Bozo. Poupo xs leitorxs do catálogo de bagaceiras executadas pelos filhos do homem, pelo Weintrouble, pelo Santini, pelo Weingarten et caterva. Porém, mesmo com tantos sinais – fortes sinais! – não há, por enquanto, o que os americanos chamam de smoking gun (o cano do revólver fumegando), isto é, a prova irrefutável de que o Cramunhão anda aprontando em Brasília. Com base nas evidências circunstanciais, só mesmo por forte convicção lavajatista a gente poderia lacrar a conclusão de que o Coiso está entre nós.
Para complicar, convenhamos, há gente tão ruim, mas tão ruim, que é capaz de jogar a culpa de suas maldades nas costas do Danado só pra se eximir das responsabilidades.
Deixando de lado a teoria do domínio de fato, resolvi presumir até prova em contrário a inocência de Belzebu, mesmo tendo ele esse nome tão caro à bancada do boi. Vai daí, tomado de estranho entusiasmo, passei dias matutando no assunto. Foi bom porque botei em dia os meus conhecimentos demonológicos, revendo as biografias de Satã do Alberto Cousté, Robert Muchembled, Elaine Pagels, Henry Ansgar Kelly, e também o interessantíssimo trabalho de Fred Parker, “O Diabo enquanto Muso – Blake, Byron e o Adversário”. Por causa desse tratado, revisitei o Blake, o Byron, o Milton, o Marlowe, o Goethe, o Baudelaire, o Dostoievsky, o Bulgakov, o Thomas Mann e, por último, o nosso Guimarães Rosa, todos eles especialistas na esfera da Fera. No fim, cunhei com meus borbotões o título óbvio para a reportagem que talvez eu ainda venha a batucar: “O Diabo na Esplanada, no meio do redemunho”!
Exorcismo - Mais alguns dias, voltei a encontrar no metrô a Gorette, a mulher do colar nambikwara, dessa vez trajando um casacão de couro marrom com tachas pontudas de metal e um enorme button na lapela com a cruz de São Damião. Ela perguntou se eu tinha levado em conta a sua sugestão de reportar a visita do Cafuçu em Brasília. Respondi que não penso em outra coisa desde então, nique, subitamente, voltei a sentir aquele calafrio, do calcanhar até a altura da vértebra C1. Credo!
Pois eu vou lhe dar outra dica para a sua investigação, disse Gorette. A coisa está tomando tamanha proporção que já criaram até fórmulas para exorcizar o Cabrunco, completou. Diante da minha cara de “cuma?”, ela explicou. Você já prestou atenção na letra do Real Resiste do Arnaldo Antunes? É uma lista de jaculatórias! E mais não disse porque logo desceu na Estação 108.
Chegando em casa, lá fui eu estudar a música do Antunes:
Autoritarismo não existe
Sectarismo não existe
Xenofobia não existe
Fanatismo não existe
Bruxa fantasma bicho papão
O real resiste
Percebi logo que a letra flui não apenas na chave da ironia, vai além!
É só pesadelo, depois passa
Na fumaça de um rojão
É só ilusão, não, não
Deve ser ilusão, não não
É só ilusão, não, não
Só pode ser ilusão
Ilusão? - Obviamente, o real ocupa aqui o lugar da resistência ao pesadelo, ou ao que parece ser um pesadelo na atual conjuntura. Contei 16 palavras e expressões do repertório de ações do atual governo: miliciano, terraplanista, homofobia, desmatamento, trabalho escravo, extermínio, tirania eleita pela multidão etc. E somei uma dúzia de criaturas mitológicas, geralmente vinculadas ao Mal: bruxa, bicho-papão, zumbi, mula sem cabeça, demônio, dragão, lobisomem etc, com seus efeitos pra lá de reais: medo, depressão, horror e opressão.
Ao que tudo indica, o Antunes está dizendo que as desgraceiras do bolsonarismo devem ser racionalmente rejeitadas assim como a gente descarta os contos da Carochinha. Mas será mesmo possível equivaler os termos concretos da primeira lista com os entes de imaginação da segunda? Miliciano eu sei que existe, mas duvido dos lobisomens. “É só pesadelo, depois passa”. Será?
Qual é a do Arnaldo Antunes? Ele quer dar uma chacoalhada em chave irônica na consciência algo paralisada da opinião pública? Estará ele conclamando as massas para uma atitude que nos acorde de um sonho ruim, motivo da TV Brasil censurar a música? Ou será que o Antunes está sabendo de alguma coisa muito mais escabrosa (o calafrio de novo!), e resolveu, como quer a Gorette, nos oferecer uma arma para combater o Trevoso na singela forma de um rol de jaculatórias – "preces a jato" em latim eclesiástico -, contendo nada menos que 52 conspícuos “nãos”?
Torto? - Não tenho ainda respostas definitivas para tantas dúvidas e, como uma interrogação puxa outra, elenco mais algumas. Será que o Capiroto estaria de visita entre nós? Veio em voo comercial ou pegou carona num avião da FAB? Terá alugado um apartamento pelo Airbnb ou estaria hospedado na Granja do Torto? (Torto? Por que a residência oficial da Presidência leva o nome do Desgraçado?) Ele anda de Uber ou de carro oficial? Pede comida pelo iFood ou almoça na cantina do Planalto? Já foi ao Clube do Choro?
Torvelim, voragem, vertigem! Neste exato momento, enquanto revejo a última temporada do guapo Lúcifer na Netflix (Ih, me entreguei: sou fã do Tom Ellis!), não paro de fazer perguntas.
Se o Canhoto existe, tudo é permitido?
Javé não estaria nos testando como quando sacaneou o pobre do Jó naquela aposta com o Chifrudo?
Pensem comigo! O Diabo há? Ou o que existe é só homem humano e mulher humana? A Regina Duarte? O Jair? O Mourão? E o Tchutchuca, caraca?
Travessia? Aliança? Nonada?