João Lanari Bo (*) -
Avesso a homenagens e rasgações de seda, Jean-Luc Godard por algum motivo resolveu aceitar que Festival Internacional de Cinema de Kerala, na Índia, lhe carimbasse um lifetime achievement em março de 2021, com direito a uma conversa virtual de 85 minutos: munido de charuto e celular, trafegou pelas perguntas e falou o que quis, bem humorado e paciente.
Para ele, o incontornável vírus que nos assola é uma forma de comunicação, é informação: não sabemos muito sobre ele – talvez alguns cientistas saibam – assim como não sabemos muita coisa do cinema.
Na mosca: o vírus é um código genético, logo informação que se transmite, assim como a (codificada) linguagem cinematográfica. “Estou terminando minha vida no cinema – sim, minha vida de cineasta – fazendo dois roteiros”, lançou aos 90 anos, sobre seu plano de se aposentar em um futuro próximo. “Depois, direi: Adeus, cinema”.
Kerala é a província mais ao sul no mapa indiano, a base do cone que conforma esse país que, a exemplo da China, desafia a lógica cartesiana ocidental. Um dos roteiros chama-se, hélas, Roteiro; o outro chama-se Guerras Engraçadas. Se algum desavisado espera roteiros de manual, esqueça: depois de reiterar sua (des)preocupação com os roteiros, Godard desfilou na tela da live sua versão poético-visual das Guerras Engraçadas; junção de palavras e imagens no estilo do seu último longa, Le livre d’image, de 2018, que no Brasil recebeu o título de Imagem e Palavra.
Perguntado sobre a famosa asserção de Giorgio Agamben – contemporâneo é aquele que percebe a sombra de seu tempo como algo que lhe incumbe e que não cessa de interpelá-lo – sorriu, apenas. Quem se recorda do seu curta na virada do milênio, Dans le noir du temps – No breu do tempo, na feliz versão de Mateus Araújo – sabe o que se passou pelos neurônios godardianos. Logo na introdução desse fabuloso poema-filme, poesia em forma de diálogo:
“Porque a noite é escura”? pergunta uma jovem, banhada pela luz intermitente de uma lareira. “Talvez o universo tenha sido jovem como você”, responde o interlocutor, “e o céu todo brilhante”. E completa: “o mundo ficou mais velho; quando olho o céu entre as estrelas, só vejo o que desapareceu”.
As estrelas são pontos de luz que remetem a uma fonte luminosa e brilhante: a razão. O tempo traz a obscuridade, que permeia as existências e transfigura os valores. Os breves e fulgurantes fragmentos escolhidos por Godard costuram a poética desse percurso: imagens de sua lavra, Viver a Vida, Rei Lear, Le Petit Soldat e Made in USA; homenagens radiantes, Evangelho segundo São Mateus e Ivan o Terrível; e registros anônimos de cenas de guerra e campos de concentração.
“Quando soube que Orson tinha feito seu primeiro filme aos 25 anos, quis fazer o meu antes dos 25 anos”, revela. Cinema era, a um só tempo, hobby e job: mas também era uma intuição, ou uma doença, a pulsão de captar a realidade, como os Irmãos Lumière queriam.
Godard começou no vácuo da 2ª guerra e da libertação, focado na produção: fazer filmes era aprender a olhar o mundo com um olhar técnico-religioso. Hoje, asseverou, talvez mais importante do que a produção seja a distribuição, um serviço de utilidade pública. O percurso godardiano, sete décadas de cinema, é extenso: longas, curtas, manifestos políticos, clipes, cartas abertas, publicidade, programas de TV, película, vídeo ou digital.
Grosso modo, são três ciclos: nouvelle vague, filmes dos anos 60 nos quais muita gente se identificou pelo comportamento libertário dos personagens, como Acossado, de 1959, e Viver a vida, de 1962; pós-maio de 68, com a radicalização política e o afastamento do circuito comercial, como Vento do Leste, de 1969; e a volta ao “sistema de produção burguês”, no final dos 70 até hoje, com uma produção abundante e melancólica, no sentido romântico da palavra, como Salve-se quem puder (a vida), de 1982, e Para sempre Mozart, de 1996. Mas, melancólico? Afinal, em plena era da internet, seria Jean-Luc algo como um poeta romântico?
“Romântico” não significa aqui um sujeito passivo, à espera de uma inspiração emotiva. Dirigir e montar, relacionar tempo e espaço, é uma operação mental e quer ser percebida como tal: não é simplesmente reproduzir um fluxo narrativo ameno e confortável para nossos sentidos.
Os filmes de Godard interrompem esse fluxo e instauram no espectador lacunas, dúvidas e questões. Nesse preciso momento, cai a internet em Kerala: mastigando o charuto, Godard interroga seu interlocutor, um crítico indiano: você pode elaborar uma imagem do silêncio? O escritor Jules Renard, completa, tinha a sua: “neve na água, silêncio sobre silêncio”. O isolamento, diz Godard, “me permite olhar o som e a fúria” do que se passa do lado de fora da janela.
Para Nicole Brennez, as propostas estéticas de Godard têm três níveis: articulação das imagens na montagem; potências simbólicas atribuídas às imagens; e relações da representação das imagens com uma efetividade histórica. A “dialética fundadora na economia das imagens em Godard”, prossegue, “é uma forma de pensar a partir do que está faltando, ou seja, imagens que não foram registradas ou vistas, filmes que não foram acabados, gestos que foram encobertos, vidas muito cedo interrompidas”. O solo epistemológico é o Witz, conceito forjado pelos românticos alemães, uma forma de pensamento crítico que identifica poesia, conhecimento e verdade.
Como seus últimos filmes encontraram essa forma fragmentada, de ruídos, clipes? pergunta o crítico. Resposta: “falta linguagem na língua…palavras, palavras, palavras, como dizia Shakespeare; hoje o master é o alfabeto Google”. Foi filmando Atenção à Direita, em 1987, que Godard, alertado pelo seu diretor de fotografia, se deu conta que seus filmes não seguiam o padrão habitual de enquadramento, ou seja, limitar, na câmera e no olhar, o que se pretende fotografar ou filmar. Seus quadros cinematográficos, par contre, são como os quadros impressionistas, pensados a partir do centro da imagem. Adeus à linguagem, de 2014, foi mal compreendido: o título correto deveria ser Bom dia, linguagem.
Em Eu vos saúdo, Maria, de 1985, Godard percebeu que “basta estar em close para Maria não emocionar mais”: numa era em que a ciência opera a reprodução humana por meio da disjunção dos corpos, como representar o dogma da geração divina de Cristo? A solução, na dialética fundadora das imagens do franco-suíço, foi mostrar Maria, em meio a convulsões que lembram o arco histérico dos corpos de Charcot, recitar, em off, uma linha do genial herege Antonin Artaud: “quero que a alma seja corpo”.
E as plataformas digitais? interroga o crítico, atento às novas tecnologias. “Não assisto…só tenho o celular!”, brada o cineasta, colocando o aparelho no centro da tela: “de vez em quando mando imagens para uns poucos amigos, como esta”, mostrando um homem pescando e olhando para o rio; “é como jogar uma garrafa no oceano”. E arremata: “o que a água, toda a água do rio, está dizendo?”
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(*) João Lanari Bo é professor de cinema da UnB.