José Carlos Peliano (*) -
Na minha época vestida de calças curtas, cabelo à Príncipe Danilo, merendeira escolar pendurada ao lado da cintura, ouvidos grudados na Rádio Nacional para acompanhar Histórias do Tio Janjão ou Aventuras do Anjo, às voltas com óleo de fígado de bacalhau, Rum Creosotado ou Biotônico Fontoura, era muito comum ouvir a expressão “fazer e acontecer”, então de uso corriqueiro.
Tipo, o menino passou muito bem de ano e vai para a série seguinte “fazer e acontecer” ou o pintor sicrano “faz e acontece” belas obras em seu atelier. Ou de uma forma apimentada, fulano vai à festa à noite “fazer e acontecer” ou fulana viaja ao Rio de Janeiro passar o final de semana, imagine só, tem tudo para “fazer e acontecer”. Muito comum nos anos cinquenta e sessenta como hoje escuto, por exemplo, entre outras variantes, fulano “vai descolar” um bom emprego ou uma boa farra à noite ou ela se vira para viver nas “quebradas” ou vai no final de semana para “as quebradas”.
A expressão é rica em significantes, que levam a vários significados, com licença de Lacan e seguidores, e exprime dois atos concomitantes, o de fazer e o de acontecer. O ato de realizar algo e o de usar o que se faz ou o que se fez e dele usufruir. Quem faz, portanto, acontece, seja para si ou para outrem ou para muitos. Afinal, acontecer figurativamente se desdobra em “a conta é ser”, assim, faz-se para ser.
Chama a atenção que o ato de fazer traz em si embutida a dimensão de pensar sobre ou imaginar ou conceber, seja pensar no próprio ato em si, seja pensar com anterioridade até a execução do ato mesmo de fazer – forma imediata de planejar. Mais ainda, o ato de acontecer exprime não só o resultado do fazer como também e principalmente a dimensão de aprender. Fez-se, aconteceu e de todo o processo ficou o conhecimento e a aprendizagem dos atos de fazer e acontecer, que recorrentes se mantém se renovando a cada vez, quando repetidos.
Desdobra-se, então, “fazer e acontecer” em conceber, fazer, acontecer e aprender. Agora, para quem já fez e aconteceu, o novo “fazer e acontecer” traz em si a concepção e o aprendizado embutidos, embora possam ser feitas adequações aos dois atos para serem realizados noutro momento. E na maioria das vezes a repetição nunca é mais a mesma, sempre se altera de uma forma ou outra.
Assim, a expressão “fazer e acontecer” é oportuna e importante porque traz de forma livre e apreendida a conjunção de dois tipos básicos e históricos de operações humanas, a dimensão física e a mental. Para que qualquer coisa seja feita dela participa diretamente partes de nosso corpo, por exemplo, entre outros: mãos (ceramista), pernas (ciclista), pés (corredor) e corpo (nadador). Ao mesmo tempo, a preparação e o acompanhamento mental da coisa a ser feita trazem o uso da memória, do pensamento, da atenção e das noções de espaço, tempo e movimento – e do “piloto automático”, que vem junto com cada um de nós.
Ao fim e ao cabo, nosso organismo se envolve diretamente nos atos de fazer e acontecer. Mais umas partes que outras dependendo do que for levado à execução imediata ou pré-concebida. Logo, a separação entre operação ou trabalho intelectual (mental) e operação ou trabalho físico é usada para distinguir e informar as naturezas específicas de cada dimensão que se inter-relacionam na prática.
Foto de Marina Mestrinho Peliano.
Lembro das corridas de fórmula 1 quanto o piloto no box instrui os mecânicos quais os problemas no carro estão dificultando sua rolagem nas pistas. Aí quem acontece (o piloto) aprende na prática para indicar a quem faz (mecânicos) onde a coisa está pegando. Do mesmo modo, na linha de montagem, o supervisor escuta os operários para saber o que está dificultando o bom fluxo dos equipamentos e máquinas. Nos dois exemplos, observa-se que os atos de fazer e acontecer estão separados por funções, como ocorre predominantemente na sociedade com exceções específicas.
Um marceneiro, por exemplo, é uma das exceções como qualquer outro autônomo ou artesão. Eles mesmos fazem e acontecem, sabem exatamente o caminho das pedras ou melhor das madeiras ou dos objetos com que executam seus trabalhos.
Anos atrás, quando pesquisava a automação microeletrônica na produção industrial soube de um caso emblemático ocorrido numa empresa metal mecânica de Minas Gerais. Um torneiro mecânico, acostumado a operar o torno manual na confecção de peças, se deparou com uma nova máquina de tornear, operada não mais manualmente, mas por controle ou comando numérico computadorizado, adquirida pela empresa. Ele acompanhou toda a programação da nova máquina realizada pelo profissional responsável. Ao terminar a programação e o profissional levá-la à máquina para um teste, ele teria sido advertido pelo torneiro mecânico de que a máquina poderia se danificar uma vez que ele, o programador, não havia capturado corretamente todos os movimentos feitos manualmente para serem inseridos na programação. O teste foi realizado mesmo assim. A máquina travou e a seguir se rompeu.
Eu mesmo passei por experiência parecida ao revés – não do que funcionava para o que não funciona, mas desta situação para aquela. Tinha meus trinta e poucos anos e passava por uma situação momentânea de baixo astral. Estive com Nise da Silveira no Rio, inesquecível amiga, e ela me recomendou voltar à Brasília e construir minha casa junto com os operários, tijolo a tijolo. Ou seja, construir o lado de fora para reconstruir meu lado de dentro.
Não deu outra, em pouco tempo voltei a estar de alto astral.
Em seguida a esta experiência, me desentendi com o arquiteto da obra e fiquei somente com o mestre e os operários. Uma descoberta. Juntos, eu e todos eles, conseguimos levantar o resto da casa com eficácia, eficiência e perfeição em tempo mais rápido do que vinha sendo com a direção do arquiteto.
Duas revelações aí. Eu mesmo fiz e aconteci psicológica e operacionalmente com a construção de minha casa. Fez parte fundamental a participação do mestre e dos operários pela interação das tarefas ao mostrarmos que boa parte do conhecimento, se não, todo ele, “faz e acontece” ou vem com a prática e o dom tácito da experiência, saber, experimentação e observação.
A conclusão para mim a tirar dessas experiências citadas é que a divisão entre operação ou trabalho intelectual e manual, na maioria dos casos, tem muito mais a ver com uma determinação cultural dominante e imposição de uma hierarquia social dela derivada, que estabelecem fins econômicos, do que para a realização das várias partes de uma operação ou trabalho em si mesmos. Dessa hierarquia é que nasce o embrião da desigualdade e preconceito social que se alastra capitalismo afora. Isto é, aqueles que pensam, criam e mandam e aqueles que executam, fazem e obedecem com as diversas repercussões consequentes.
Tal como afirma Richard Sennett em O Artífice, p. 22, Record, São Paulo, 2008, “a história traçou linhas ideológicas divisórias entre a prática e a teoria, a técnica e a expressão, o artífice e o artista, o produtor e o usuário; a sociedade moderna sofre dessa herança histórica”.
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(*) José Carlos Peliano, poeta, escritor, economista.