José Carlos Peliano (*) –
Então, o lado bom da pandemia, se é que se pode achar assim, pelo menos para mim, foi usar mais o tempo em casa, além de rever e ajustar todos os rituais cotidianos, fora o trabalho, para a leitura e pesquisa de coisas e temas que me interessavam. Algo como o ensinamento da Juventude Estudantil Católica (JEC) lá pelos anos sessenta, assim posto: “Ver, julgar e agir”. Pois, então, foi vendo, ajustando a compreensão e agindo que pude me dar conta que o tempo é o que carrego em mim. O outro, o de fora, do dia, noite e madrugada, é onde se age com as pessoas, as coisas, os bichos e a natureza. Antes que o céu desabe sobre nós! Salve Davi Kopenawa, xamã yanomami!
Tudo começou ao parar para perceber que o tempo conhecido por nós que é o medido em segundos, minutos, horas, dias, meses e anos, não é o tempo, mas sua medida, como os índios, por exemplo, o contavam em luas. Que por sinal, além de ser mais poético, saudável, não nos esmaga tanto com a percepção de que cada dia é um fardo a mais a levar em frente quando a vida se desenrola difícil e caótica como nos últimos cenários sociais, econômicos e políticos, nacionais e internacionais.
Até aqui não é novidade alguma o que foi dito sobre o tempo. Até mesmo o físico italiano Carlo Rovelli chegar a afirmar que a “realidade não é o que parece”, nem o tempo. Essa linearidade que é contada nos calendários só existe nos calendários, pois o resto é mais espaçoso e atemporal, assim como imaginar o espaço e o tempo parado no ar, tipo “câmera lenta” ou mesmo sensação congelada. O que chega bem perto dessa imagem é a meditação cujo segredo passa perto de deixar a consciência perceber tudo ao redor, mansamente, devagar e sempre, congelando o tempo ao redor, reduzindo o espaço de fora e ampliando o de dentro e chegar, quem sabe, perto do imponderável.
Aí me dei conta com meus botões que, mesmo sem meditar, se pode perceber que o tempo é muito maior do que este que vivemos dia a dia. Como é isso? Que história é essa? Me olhei no espelho fixamente nos olhos e perguntei: que papo é esse? Decifre ou te devoro. Então, ao me ver no espelho vi que meu espaço daqui, em frente ao espelho, era o mesmo espaço de lá, do outro lado do espelho. O espelho era a passagem de um espaço a outro, de um tempo a outro. Tipo o sonho, dormindo ou não, tipo voltando à memória e pegando um gancho de um dia, um momento, uma paisagem, um encontro, uma vida. Sim, o simbolismo do espelho me mostrou que o espaço-tempo onde vivo pode ser maior se adiciono outro tempo-espaço, seja do espelho, do sonho e da memória. Eles têm vibrações próximas, “vibes” parecidas.
A memória me traz bem de perto, no entanto, a sensação do tamanho aumentado do tempo cotidiano. Não é que passamos boa parte do dia imaginando ou recordando coisas, mesmo revivendo várias vezes a mesma situação, até que sentimos o café entornando na xícara porque não percebemos que a garrafa estava ainda em nossas mãos? A distração evidencia que não estamos onde estamos naquele momento, mas onde estava a imaginação percorrendo o caminho da memória. Outra situação, outra sensação, outro lugar, outro tempo.
Ah! Mas este outro tempo estava incluído no tempo do aqui e do agora. Tempo dentro do tempo. Logo, como é que fica? Fica de uma forma de ver diferente. De fato, é tempo dentro do tempo, ou melhor, para se imaginar e divagar e reviver é preciso estar vivo, na trilha do tempo corrente. Ocorre que é possível ver que a memória do que se vive está guardada na consciência com cada um de nós, então o tempo vivido tem um “back up” completo no nosso computador mental. Em termos simples, são dois tempos, uma vida semelhante a que se vive a cada dia arquivada na memória. Mas também dois espaços. Então, duas dimensões, uma concreta, outra fluida, uma dita real, a outra virtual, mas semelhantes.
E a memória carrega uma vantagem adicional. Ela pode além de ser revista, revivida, repetida, também pode ser reformulada do jeito que nos parece melhor. Ou aprimorar a experiência, ou adequá-la ao que achamos mais apropriado, ou reescrevê-la e regravá-la para que nos faça sentir bem melhor. Tipo o que fazemos no computador como agora eu redigindo este texto, pois posso relê-lo, corrigi-lo, melhorá-lo, apagar frases ou palavras fora de contexto, e assim por diante. A memória é o tempo e o espaço que temos para “ver, julgar e agir”.
Pois, então, a memória que me dá o tempo duplo pode até me ajudar a ampliar o tempo arquivado, seja por que desejo for. O que me dá um tempo muito superior de vida do que o contado diariamente. Logo, o tempo é ampliado, elástico, ilimitado, ainda assim indefinível. Na mesma trilha vem o espaço, o de fora e o da memória. Pois não sei onde os dois começam e terminam, uma vez que como pode-se com a memória recomeça-los e termina-los quantas vezes quiser, os dois não têm lugar, hora e vivência definidos.
E onde entra o gafanhoto? Dias atrás vi um gafanhoto boiando, preso n’água de uma grande bacia. Fui até lá e vi que estava ainda vivo. Peguei-o com delicadeza e o coloquei na folha de uma jiboia. Passaram-se dois ou três dias e o gafanhoto no mesmo lugar. Cheguei até lá e remexi levemente a folha para ver se ele estava bem e de repente ele deu um salto meio que voo e desapareceu. Me dei conta naquele momento que o “de repente” pode ser também de repente uma ilusão. Ou seja, a sensação da ilusão foi a de vê-lo na folha e de repente nada mais. Mas, ele estava guardado na memória, pude voltar e reviver o salvamento. Ainda mais porque gravei sua sobrevida na folha da jiboia por uma fotografia.
Tudo isso para por junto e ver que tempo, memória e ilusão caminham de mãos dadas. Três faces de uma mesma vivência. Três vivências de uma mesma face. Manoel de Barros, o poeta pantaneiro, acho, já havia percebido isso quando se expressou em versos “repetir, repetir, até ficar diferente; repetir é o dom do estilo”. Ou eu mesmo, no poema Fundamento: “no fundo do poço, o passo sem fundo, se afundo não posso, se posso aprofundo, aposso do poço e me fundo”.
Ao fim e ao cabo vejo que o gafanhoto sou eu, somos cada um de nós, uma frágil presença no meio do mistério, onde o tempo, a memória e a ilusão se vestem de vida para nos deixar viver e aprender. Antes que o céu desabe!
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(*) José Carlos Peliano, poeta, escritor, economista.