José Carlos Peliano (*) –
estar dentro de volumes de figuras geométricas de três dimensões
barraco, casa, apartamento, tenda, coberta de viaduto
jaulas sem barras forçadas por um vírus coroado
cheio de pontas, quase alfinetes, arpões, lanças, punhais
que os olhos não veem, o tato não toca, o olfato não sente
sanha de um guerreiro invisível, ameaçador, contagioso
nesses espaços contados aos passos vezes sem conta
ir de um lado a outro, voltar, virar, abaixar, curvar
todos os verbos em movimento são conjugados
a imaginação ultrapassa os limites do silêncio e da interrogação
a leitura de livros não dá conta da ansiedade, da ocupação das horas
de que história cabe para contar a história do isolamento
da falta de andar na rua, de sair de carro, de ver vitrines
de ampliar o espaço do corpo ao espaço do espaço dos outros
até que a imposta rotina da quebra de rotina tropeça no estalo
que vem da própria rotina descorada, sem bússola ou trilha
a tímida voz vem de não se sabe onde indicando caminhos:
“abra as janelas para tentar ver os pássaros
descosturando pena a pena, asa a asa, a madrugada
destranque as portas da frente e de trás
para ter como entrar a claridade equilibrista
na corda bamba de sombras, mofos e escuridão
que acabam virando pó debaixo dos móveis”
“procure receber a manhã antes da primeira piscadela de luz
para não ficar mais preso aos ponteiros do despertador
deixe a chuva respingar nos umbrais, parapeitos e soleiras
ou o sol chegar pelas frestas sem ter sido chamado
repare se puder algumas lagartixas subindo a parede
como se fossem uma trepadeira de pregos”
“convide todos os que habitam em você sob sua forma
a saírem do piloto automático, das agendas, dos celulares
ponha 19 lugares à mesa, real ou imaginária, convide 19!
os pratos seguidos e espremidos um ao outro
mesmo que a soma de todos eles e dos lugares
não chegue a tanto nem refazendo a conta”
“experimente cuidar de cada dia por estes dias,
com vontade de se ver sentado à mesa
servido com o que tiver sobrado nos lugares dos guardados
pouca banana, pão dormido, leite talhado, meia dúzia de biscoitos,
garanta a companhia do café quente caneca a caneca
deixe as cadeiras e bancos conversando por ali ao se levantar
até chegar o almoço e o jantar se vierem a ser postos
enquanto você volta a conversar e fazer junto com você seja o que for”
“afinal sua casa pode voltar a ser realmente a sua casa
se sentir reconfortado, preferido, companheiro
seu aconchego de chegar e sentar como quiser,
seja ela qual for e do jeito que puder,
não mais um dormitório, uma lanchonete, uma passagem
lá reside com você um sentimento sem crachá nem uniforme
que tem tudo para ser aprendido e destravado
à espera de renascer, espreguiçar, ouvir Barry White, esticar as pernas
levantar e ir se contaminar porta adentro por todos os cantos
ver da janela pingos de chuva, de sol e de orvalho das árvores”
“como uma epidemia que te assoma para alastrar por suas mãos
suas manias, seus cacoetes, suas lembranças, sua pulsação
a vida se vendo contaminada pelo vírus de você
aquele que vem junto desde sempre correndo pelas veias
e você não vê, não quer ver ou tem receio de entender
até dar a luz ao outro que fica e o olha lá de dentro
trancafiado à espreita esperando finalmente a hora da sua chegada
para te levar daí em diante cheio de surpresas e cores
feito um caleidoscópio que desdobra várias imagens
e conseguir mostrar que os momentos também passam fora dos computadores
que você não enxergaria nunca com seus olhos de ontem”
______________
(*) José Carlos Peliano, poeta, escritor, economista.