"A vida é de quem se atreve a viver".


John D. French: “O problema do Brasil não é a corrupção e sim a desigualdade extrema”
Lula analisado por quem ama o Brasil

Patrícia Porto e Romário Schettino –

O brasilianista John D. French (*), autor da biografia Lula e sua política de astúcia – de metalúrgico a presidente (Lula and his politics of cunnings - From Metalworker to President), afirma que o país “está numa situação angustiante”. “Tanto para mim”, acrescenta, “quanto para qualquer pessoa que ama o Brasil”. O professor ressalta que os problemas brasileiros se agravaram muito, e com a pandemia pioraram ainda mais. “É visível a desagregação do Estado, com rixas e conflitos que antes não existiam.”

Para French, Jair Bolsonaro “representa o pior dentro de uma instituição do Estado que tem não apenas coisas negativas, mas responsabilidades nacionais. Qualquer pessoa que assuma o poder tem que coibir as ambições que levaram a instituição militar a se comprometer com atividades que não são suas, e fizeram um péssimo trabalho”.

Sobre as eleições de 2022, o historiador arrisca: “Qualquer pessoa que ganhe a corrida eleitoral – fundamental para a trajetória do Brasil – vai ter que recompor o balanço, equilibrar os interesses regionais e de classe – o país vai ter que trabalhar conjuntamente. Para as pessoas que falam muito numa polarização, eu gostaria de dizer que todo mundo sabe que o Lula não é uma pessoa que polariza, pode-se dizer que o PT polariza, mas Lula é um político que trata com qualquer um, respeita seus interesses e busca encontrar soluções”.

Pesquisas e viagens – “Minha primeira viagem ao Brasil foi em 1980, passei vinte meses fazendo pesquisas em São Paulo sobre o ABC – 1981-1982. Depois, mergulhei na leitura de muitos livros sobre as greves de 1970. Quando terminei minha dissertação na Yale University, meus primeiros artigos sobre Lula e suas origens­ - que sobreviveram de forma bastante modificada no livro - foram escritos em 1986 e 1996”, disse John D. French em nosso primeiro encontro virtual.

French conta também que passou o ano 2000 morando em Sergipe, onde sua mulher fez doutorado em antropologia estudando índios e quilombolas do Baixo São Francisco. Nessa época estudou as origens e o crescimento eleitoral do PT em quatro estados nordestinos. Depois de 2002, concentrou suas atenções, durante um ano e meio - utilizando-se de bolsas do Woodrow Wilson Center for International Studies e do Kellogg Institute de Notre Dame – ao projeto plurianual sobre o governo Lula enquanto participava de pesquisa sobre as “viradas” políticas para a esquerda na América Latina.

A primeira versão do livro, informa John D. French, era para ser um trabalho em dois volumes abrangendo 23 anos de pesquisa. Depois de apresentado de forma privada em um workshop em 2014, o livro foi reduzido a um único volume em outubro de 2019, com publicação no ano seguinte.

A seguir, a íntegra da entrevista:

Brasiliários – O sr. escreveu uma biografia de Luiz Inácio Lula da Silva em um livro de 520 páginas, resultado de 40 anos de pesquisa. Que pontos destacaria como os mais relevantes nesse trabalho?

John D. French – Primeiramente, seria bom falar sobre como se deu o processo de escolha do tema. A ideia surgiu em meus primeiros contatos com Emília Viotti da Costa – importante historiadora da USP, aposentada ainda muito jovem pelo regime militar brasileiro ao lado de outros 56 professores daquela universidade, dentre os quais, FHC.

Ela estava exilada nos Estados Unidos e foi orientadora de minha tese de doutorado em Yale. Meu interesse inicial era estudar a história do México no século XIX. Tinha vivido um ano lá, entre 1967 e 1968, enquanto estudava na Universidade Nacional Autônoma do México – Unam, na época dos grandes movimentos estudantis. Na primeira conversa com Emília Viotti, ela recomendou ter cuidado na escolha, porque o assunto dominaria minha vida nos vinte anos seguintes. Ela perguntou se eu tinha outro tema que me interessasse. Então citei as greves no ABC paulista.

Ela concordou ser um tema importante a ser explorado. Então, no final de 1979 estive no Brasil, quando Lula tinha sido preso e estava sendo processado pela Lei de Segurança Nacional. Depois retornei no início dos anos 80, e fiquei aqui cerca de ano e meio.

O livro não é só sobre Lula, porque não se pode separá-lo do que foi São Paulo nessa época. Uma fase de grande crescimento, mas também um ambiente de aventuras, esperanças, onde filhos de famílias do interior encontraram um mundo totalmente diferente dos pais, e um mundo de possibilidades.

Podemos dizer que o livro é uma exploração desse mundo, porque foi aí que nasceu um conjunto de mudanças. Foi uma época em que se formou uma visão do que poderia ser o Brasil. País de hierarquia estratificada, categorias cristalizadas que acabaram sendo desafiadas pela realidade. O mundo estava crescendo e havia necessidade de operários qualificados.

De que maneira o sr. colheu as informações sobre a formação profissional do Lula e de como ele chegou a ser torneiro mecânico?

Lula fala em ser torneiro mecânico como ponto fundamental em sua trajetória. Ele fala disso como uma profissão. Quando lhe perguntam o que ele é, politicamente, ele sempre responde “sou torneiro mecânico”. Pessoas de fora têm impressão de que trabalhadores braçais são todos iguais, que não têm uma diferenciação. A geração jovem da USP estava vendo esse mundo do trabalho na indústria dessa forma, mas esse é um mundo diferenciado.

Na composição da narrativa, juntei todas as versões, coloquei as versões em diálogo entre si, minhas descrições são baseadas em entrevistas com Lula, mas também com pessoas da família Silva, em especial Frei Chico.

Outras pessoas estavam estudando e documentando esse período, como FHC e outros.  Há dezenas e dezenas de estudos sobre o ABC – onde você encontra muitas observações de operários. Reuni esse material e coloquei junto com as histórias contadas, ao lado de observações de Lula, além de vozes dos operários anônimos captadas pelos sociólogos da USP na época.

O livro dedica muito tempo à abordagem sobre educação. Tem vários capítulos que tratam do tipo de trabalho do torneiro mecânico, o chão da fábrica versus hierarquias superiores. Encontrei muitas informações num estudo sociológico de Luís Pereira sobre a escola pública da época. Havia escolas públicas de qualidade, mas com o crescimento da população o sistema começou a entrar em crise. As pessoas às vezes perdem a noção do que foi construído como parte do desenvolvimentismo, em que o Senai foi muito importante, parte importante e bonita. Nessa época desenvolveram-se formas de pedagogia muito abertas e ao mesmo tempo mais democráticas.

Como avalia o significado dessa profissão, para Lula e a família dele, do ponto de vista material, subjetivo e da autoestima?

Nos três anos em que Lula passou entre o Senai e as aulas práticas na fábrica, ele diz que foi aí que encontrou a cidadania. Estava aprendendo a manejar equipamentos da modernidade, correspondia a participar da realidade do mundo inteiro – trabalho que exige inteligência, disciplina, sentido de autoestima, e em que você precisa continuar aperfeiçoando seu conhecimento. Também vinculado à ideia de que se pode fazer alguma coisa, pois o “Brasil tem jeito”. Lula tem sempre uma visão otimista, também uma convicção de que mesmo grupos em conflito podem avançar juntos com benefícios para ambos os lados.

Uma parte do apelo de Lula é justamente a ideia de um crescimento compartilhado, de que o regime militar foi uma recusa, daí as grandes greves do final dos anos 70 – a ideia do governo militar era “crescer o bolo para depois dividir”, mas isso gerava um sentimento de injustiça em quem estava trabalhando.

Há muitas histórias dessa época em São Paulo que não vão deixar propriamente uma nostalgia, mas a lembrança de qual foi a origem do mundo de hoje, origem de presidentes como Fernando Henrique e Lula. Esse mundo foi onde cresceram alternativas democráticas, que acabaram construindo a Nova República.  Democracia hoje ameaçada, mas não acredito que o povo brasileiro vá andar para trás, sem deixar de reconhecer as ameaças autoritárias que acabam sendo parte da cultura brasileira também, mas acredito na vocação democrática do povo brasileiro.

Do ponto de vista subjetivo, Lula sempre gosta de falar de si, da sua experiência de vida, sempre falava da sua vida abertamente – o que surpreende de certa forma, vindo de uma pessoa que passou por muitas dificuldades (falava de coisas que poderiam ser consideradas como humilhantes, como passar fome etc). Essas coisas mostram que ele não tinha vergonha de sua origem, ele conta essas histórias dezenas de vezes.

Para a geração que chegou com os pais em São Paulo, para avançar, vencer na vida, sabia que a chance não era para todo mundo. Para Lula houve um começo, um pouco de educação em Pernambuco e em Santos, mas houve o conhecimento e a disciplina de “ir atrás”, mesmo com escolas de qualidade variável, aprendendo e avançando e conquistando. Nessa época, um ferramenteiro da indústria automobilística ganhava um salário maior do que a média dos alunos egressos da USP.

Todavia, vão sempre ser olhados com certa superioridade, em parte por causa da origem regional ou cultural, porque existe um conflito cultural; são discriminados seja porque é um trabalho braçal, – ideia herdada da escravidão, pessoas que têm cultura (boa educação, bons costumes) “mundo das pessoas de bem” (como diz Bolsonaro, usando expressão antiquada) e os outros ... Não apenas as manobras do regime ditatorial e a distribuição desigual. Havia o tratamento preconceituoso e autoritário. São Paulo foi um lugar onde esses traços autoritários começaram a ser desafiados, política e culturalmente.

O processo de mudança social nunca é uma coisa que acontece porque houve uma iluminação e as elites decidiram. É sempre um processo de muita luta – com a redemocratização começou uma era nova. Nos anos 80, com os militares fora da política, o país tornou-se menos preconceituoso e autoritário. Mas os vícios - racismo, autoritarismo, conservadorismo moral, essas coisas não desapareceram.

Como você vê o quadro atual da política brasileira, que aponta para uma disputa entre a esquerda (representada por Lula) e a extrema-direita (representada por Bolsonaro) em 2022?

Sobre a política brasileira, pergunta interessante. Perfil político do Lula, centro-esquerda? Esquerda? As pessoas perguntam isso. Acho que a capacidade dele de ser um bom político surgiu dentro do sindicado, possibilidade de criar espaços de convergência ao redor dele, mediar, juntar pessoas em torno de si, mesmo com interesses conflitantes.

Há grandes debates da ciência política no Brasil. A ideologia é importante na votação popular? A questão pode estar vinculada a noções preconceituosas relativas à base do eleitorado dele. Quem pensa como direita/esquerda, em geral são pessoas com educação superior. Mas penso que, falando de Lula como político, seria erro pensar que a maioria do povão está ligada nessas classificações direita/esquerda. Em geral, o povo quando vota, e também em suas atitudes, prevalece o sentimento de imediatismo, características humanas de reconhecimento de suas necessidades, do que pode levar a alguma coisa concreta.

O apelo de Lula sempre foi muito além da esquerda; em todas as eleições presidenciais a esquerda é apenas um terço da votação de Lula. Todo mundo tem o Lula que interessa a eles. Qual o Lula verdadeiro? Votam nele tanto pessoas com visão altamente politizada, com visão clara de esquerda, quanto uma grande massa que o vê, digamos, como um “vovô bondoso”, que “confia em nós e temos que ter confiança nele”, em quem se pode confiar etc. Lula não tem dificuldade de unir essas pessoas.

O presidencialismo de coalizão brasileiro é um problema político que afeta a governabilidade e expõe, em muitos casos, a corrupção. O que pensa sobre esse tema, tendo em vista o histórico recente dos chamados “mensalão” e “lava-jato”, que atingiram o PT e Lula?

A política brasileira tem peculiaridades bem conhecidas desde o começo do século XIX, ou desde o começo da República. Política é o jogo de uma minoria, uma classe política fortemente dividida. Pouca coisa existe de política nacional. Existe política regional, dos estados e, dentro dos estados, tem a política da capital, do interior e a municipal, e a eleição, uma forma de decidir quem vai ocupar as cadeiras de vereadores, deputados etc. Política aqui é transacional, baseadas em grupos, de vez em quando, famílias de políticos, isso é parte da política dessas localidades.

Uma crítica da esquerda, e também de liberais, uma ideia de cientistas políticos, é a ideia de que seria uma coisa boa ter ideologias, seria uma visão mais moderna. Pode ser melhor uma política de linha ideológica; mas acho que esse paroquialismo do baixo clero - que constitui a maioria da classe política brasileira - tem uma coisa razoável em termos de desenvolvimento. Porque uma política baseada em ideologias definidas leva a uma polarização total, um grupo contra outro.

Estamos sofrendo nos EUA exatamente isso. Acaba sendo destrutiva na sociedade. O que você pode dizer sobre o baixo clero? Tem várias coisas que podemos dizer: o interesse deles é paroquial, mas quando o Brasil passou de um país agrário para o industrial, não houve um conflito entre os dois lados.

Foi fácil para Getúlio reunir os políticos em torno de interesses paroquiais. O PSD, não tem nada a ver com social democracia, mas era de famílias dominantes nos locais. Há muitas piadas dos anos 50, que ilustram como funciona a política brasileira. No começo da polarização getulismo x antigetulismo, comunismo x capitalismo, perguntaram a um político do PSD com quem ele ficaria, entre a Bíblia e o Capital, e ele respondeu “eu escolho o diário oficial”.

O Centrão está tirando vantagem ao dar apoio a Bolsonaro, mas não tem nenhuma fidelidade a ele. Presidencialismo de coalizão deixa margem para evitar polarizações perigosas - acho isso importante, e cito o livro de Vitor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, em que as peculiaridades descritas são rotuladas no Brasil como sendo apenas corrupção. Porém, temos que pensar, corrupção tem uma história no Brasil como um lema político muito utilizado - “mar de lama” - na cruzada contra governo Getúlio Vargas e que o levou ao suicídio.

Fazendo comparação com os EUA, lá o sistema tem mais realismo sobre a questão da corrupção. O sistema eleitoral num país capitalista sempre vai ter corrupção. Você está falando de um negócio, porque as pessoas querem recursos, e o Estado tem recursos.

Por outro lado, as leis sobre corrupção no Brasil e os princípios que definem o conceito de corrupção são muito abrangentes. São perfeitos, mas tão exaltados que fica impossível fazer política no Brasil. Nos EUA – não estou dizendo que seja bom – mas, a título de exemplo, há aceitação de que políticos recebam doações de empresas, o que recentemente ficou até mais aberto.

Nos EUA, você precisa provar que houve a doação com um determinado fim ilícito, tem que provar que o recurso foi usado, para que foi usado e se a finalidade era ilegal. Temos muita corrupção nos Estados Unidos - cinco governadores de Illinois seguidos foram condenados. Contudo, a legislação anticorrupção e o moralismo vinculado a essa legislação abre, por assim dizer, uma coisa tipo caixa de Pandora, porque, na realidade, qualquer governador ou prefeito tem que fazer coisas chamadas ilegais, mas que são necessárias para tocar a máquina estatal.

Não me refiro a decisões destinadas a favorecer diretamente pessoas ou grupos, que nesse caso têm que ser julgados e condenados. Mas, no Brasil, se alguém vai ser prefeito, vai precisar logo de advogados, porque mesmo anos depois de sair do cargo pode ser processado por alguma decisão tomada.

Como vê a Lava-Jato?

Lava-Jato e mensalão. Antes disso - uma coisa clássica, bem brasileira -, a corrupção foi sempre um chamamento pelas pessoas da oposição. Na gestão Fernando Henrique, o PT falava em corrupção no governo o tempo todo. Não estou dizendo que não houve. Todavia, se você partidariza a corrupção, você está cometendo um erro. Sempre vai haver pessoas que estão traindo suas responsabilidades, devem ser investigadas, cassadas e mandadas para a cadeia. Mas não se pode vincular isso com o PT e dizer que o PSDB não tem corrupção - está errado. É uma politização da ideia.

Derramamento de dinheiro da Petrobras, bilhões de reais, por causa de fraudes, acabaram enriquecendo individualmente certas pessoas. São coisas que foram reveladas, e isso não foi propriamente uma surpresa, porque no Brasil tem muito. Tenho uns 60 livros sobre casos de jornalistas investigando denúncias de corrupção.

A politização, no entanto, acabou convertendo a investigação em instrumento de partidarização. Deixou de ser baseada nos interesses do Estado. A perseguição a Lula foi forte, gerou uma grande mobilização que deu no impeachment de Dilma. Mas o mais interessante é que Lula não foi destruído - eles pensavam que finalmente iam destruir o Lula, mas a popularidade dele não caiu, e então decidiram tirá-lo do jogo, impediram-no de se candidatar.

Essa utilização de acusações de corrupção para fins políticos enfraquece a própria luta contra a corrupção. Quando partidariza o combate, para alcançar um objetivo político, você cria a ideia de que o combate à corrupção não é uma política de Estado e sim de oposição.

Uma coletânea sobre investigação de corrupção publicada nos EUA (Power, Timothy J., and Matthew M. Taylor, eds. Corruption and Democracy in Brazil: The Struggle for Accountability. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2011) mostra claramente que uma das coisas feitas no governo Lula foi que ele aumentou a autonomia e a independência da Polícia Federal e do Ministério Público, criou a legislação incluindo a Lei da Ficha Limpa, e houve muito mais investigação nos governos de Lula e de Dilma do que em qualquer um dos anteriores. Não quer dizer que não houve corrupção no PT, que existe em todos os partidos, como já comentei. A hipocrisia foi ter um monte de políticos como Temer e Bolsonaro dizendo que o PT era corrupto. Fazer campanha política em cima disso é muito perigoso.

Você acha que a Lava-Jato perseguiu Lula?

Sobre as investigações em Curitiba e a perseguição a Lula, houve rompimento das regras do “todos são iguais perante a lei”.  Houve irregularidades. Houve violação de direitos humanos para combater corrupção. Isso cria dinâmicas perigosas para a população em geral.

Nos EUA, o equivalente à Oderbrecht seria a Bechtell. Seria impossível, com base na interpretação da lei, colocar o presidente da Bechtell por três anos na cadeia para obter informações, seria violação dos direitos do presidente da companhia.

O problema do Brasil não é a corrupção e sim a desigualdade extremada, entre as regiões e baixa distribuição da renda e dos recursos econômicos, desigualdade entre pessoas baseada na sua cor, desigualdade entre gêneros, na verdade, desigualdade como falta de um desenvolvimento inclusivo, que incorpora todos no país. Está errado dizer que a corrupção é a única coisa importante... foi isso que acabou com companhias como a Oderbrecht e Camargo Correia, entre outros.

A Bechtell está hoje fazendo contratos que seriam da Oderbrecht – não digo que o objetivo tenha sido beneficiar a Bechtell; mas foi falta de responsabilidade de um grupo de jovens de perfil homogêneo, pertencentes a uma região de origem europeia, cheio de preconceitos políticos e culturais contra o outro Brasil, que tinha ganhado quatro eleições em sequência - não é pouca coisa. Lula é o Pelé da política eleitoral presidencial no mundo. Ganhou mais World Cups do que Pelé!

Com sua experiência e conhecimento sobre o Brasil, o sr. tem alguma recomendação a fazer à esquerda brasileira, em relação a possíveis alianças com correntes mais conservadoras na política para derrotar a extrema-direita?

O Brasil está numa situação angustiante para mim, como para qualquer pessoa que ama o país. Os problemas aumentaram muito. Além da Covid, tem a desagregação do Estado, rixas e conflitos que antes não existiam do mesmo jeito. Com o aumento do armamentismo e a ideia de que mais armas nas mãos da população é uma coisa boa, já temos a experiência, nos Estados Unidos, de que essas não é uma boa opção, mesmo em um país mais desenvolvido do que o Brasil.

Qualquer pessoa que ganhe a eleição do ano que vem – fundamental para a trajetória do Brasil – vai ter que balancear os interesses regionais e de classe – o país vai ter que trabalhar conjuntamente. Para pessoas que falam muito numa polarização, eu gostaria de dizer: todo mundo sabe que o Lula não é uma pessoa que polariza, pode dizer que o PT polarize, mas Lula é uma pessoa que trata com qualquer um, respeita seus interesses e busca encontrar soluções.

O que acha que poderá acontecer em um futuro governo Lula na relação com os setores militares?

Em relação aos setores militares, Bolsonaro comprou o apoio de muitos deles com a incorporação no seu governo. Conta com apoio e entusiasmo dentro do Exército - não apenas entre quadros do Clube Militar, mas também entre certos jovens que estão querendo pegar carona na política vinculando-se a Bolsonaro. Entretanto, Bolsonaro não é um candidato dos militares, um político que possa ser apoiado por militares – é um “bunda suja”. A opinião de Geisel e outros sobre ele era negativa, ele falou em colocar bombas, escapou por um triz da justiça militar, e depois fez demagogia utilizando revanchismo em relação ao fato de que os militares saíram do poder.

Bolsonaro representa o pior dentro de uma instituição do Estado que tem não apenas coisas negativas, mas responsabilidades nacionais. Qualquer pessoa que assuma o poder tem que coibir as ambições que levaram a instituição militar a se comprometer com atividades que não são suas, e fizeram um péssimo trabalho. A grande esperança seria a reincorporação de todos os grupos e instituições numa visão conjunta do que deveria ser o Brasil.
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(*) John D. French (na foto, acima)  é professor de História e Estudos Africanos e Afro-Americanos em Duke University, possui doutorado em História brasileira pela Yale University (1985) com orientação de Dra. Emília Viotti da Costa.  Já publicou dezenas de artigos além de vários livros incluindo O ABC dos Operários: Lutas e Alianças de Classe em São Paulo, 1900-1950 (1995), Afogados em Leis: A CLT e a Cultura Política dos Trabalhadores Brasileiros (2001), e The Gendered Worlds of Latin American Women Workers: From Household and Factory to the Union Hall and Ballot Box (1997). Seu livro mais recente foi publicado em Outubro de 2021: Lula and His Politics of Cunning: From Metalworker to President.
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Veja também vídeo e texto complementares:

1) Os historiadores Alex Lichtenstein e John French conversam sobre o livro Lula e sua Política da Astúcia: de Metalúrgico a Presidente (UNC Press, 2020) – Labor: Studies in Working Class History. Um fórum de discussão oferecido gratuitamente de 26/8 a 30/11/2021. Veja no YouTube aqui

2) Leia (aqui) artigo, em inglês, de Brodwyn Fischer: Lula and the Future of the Past (Lula e o Futuro do Passado).

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