"A vida é de quem se atreve a viver".


Os romances, ou, as leituras para os “algarismados”

Luiz Martins da Silva –

Houve um tempo em que saber ler implicava muitas vantagens, algumas, boas surpresas, senão confiram comigo.

De menino já descobri uma ligação entre leitura e futuro. E eu bem que reforçava essa crença. Só de ouvir zum-zum sobre repartição de tarefas, eu já me atracava com lápis e caderno. Tirar leite das criações? Eu não levava jeito para espremer úberes, mas, perguntassem quanto era 9 x 7 e eu tacava um 63, na bucha. E o contrário, 7 x 9? Dá na mesma, e ainda, dava uma esnobada: “A ordem dos fatores não altera o produto”. Até fingiam que compreendiam esta pérola.

Por mim, estávamos, até hoje, lá com as vacas, cabras, carneiros, porcos, galinhas, perus, peixes no açude, horta e, claro, meu melhor amigo, um gato rajado de manchas amarelas, para onde eu corria, lá ia ele, rabo empinado, acompanhou-me desde as primeiras palavras, primeiros fonemas, ele era o meu querido e inesquecível Mimi. A verdade é que eu gostei de vir a conhecer as letras e os números. Mas eu sempre fui e serei, também – e, talvez, principalmente –, um bucólico.

Mas, de seca em seca, a sina do sertanejo é arribar, aprendiz de aves, arribações. Pois. Vai-se para uma primeira cidade; depois, para uma cidade maior; e, por último, para a Capital. Brasília veio como a grande novidade, a Capital das capitais, pois cidade “planejada”, exemplo de “modernidade” para todo o mundo, estava lá, bem escrito e documentado para leituras, na revista O Cruzeiro.

Mesmo na primeira cena urbana eram várias as mudanças, de casa em casa, o aluguel, até que se comprasse uma e, depois, vender esta uma para a migração mais longa, Brasília. Enquanto isso, vamos às aventuras de quem sabia ler, ainda mais, leitura de encantos, “romances”.

Uma das coisas boas das cidades eram as feiras e as festas religiosas. As primeiras, todos os domingos. As outras, no de vez em quando, mas, em especial as que tinham leilões e barracas. Era quando o adro da igreja também se assemelhava a uma grande feira, com diferenças. Eram noturnas e não havia a sacaria de farinhas, cereais, rapaduras e toda sorte de bichos, desde os de comer às jiboias, lagartos, macacos... De passagem pelas feiras dominicais, seja nas vendas, seja nas compras, era costume alguém, algum tio/tia passar lá em casa e, aí, eu já sabia. Lá vinham os elogios: Esse menino sabe ler, escrever e “tirar contas” nas quatro operações.

Um determinado tio de longe, não era de sangue, passou a frequentar mais o lá em casa, depois das feiras, para que eu lesse para ele uns “romances”. Ler ele lia, assinava bem o nome, votava; também sabia lidar com os números. Mas, dizia, na minha voz a leitura saia mais escorrida e como que, na minha voz, a voz das próprias ‘pessoas’ romanceadas. Isto eu viria aprender um pouco mais tarde, como fazer, verdadeiramente, uma leitura; quase interpretação; com entonações dramáticas. “Quando esse menino lê, até parece que eu escuto os suspiros das pessoas do romance”. Certa vez, ele ficou encantado com uma tirada que eu mesmo inventei. Um dos romances contava a vida de um vaqueiro. Pois, não é que eu cantarolei o aboio do vaqueiro? Esse tio passou, também, a trazer para mim, de presente, um ou outro “romance”, o mais famoso, O pavão misterioso.

Havia os “romances” de castigo. Esses não eram tão emocionantes quanto os dos valentões. Também apreciava muito as histórias dos humildes que terminavam bem, enaltecidos e admirados por todos pelos desafios ultrapassados e, ainda, terminarem, nas histórias, bem casados e prósperos. Este era o caso de personagens que, além de heróis, eram também muito engraçados: Trancoso, João Grilo, Pedro Malazarte e outros. Houve um caso inesquecível, um sujeito que tinha muita fome e ia comendo tudo que achava pela frente, um dia, deram, de propósito, muita comida para ele. Ele comeu tudo e, por último, comeu os pratos também.

Meu pai, homem muito aferrado ao chão e às pelejas da sobrevivência sobre a terra (de principal profissão, lavrador), resmungava: “Muita fantasia!”. Desdenhava daquelas invencionices, “D’onde já se viu...!” Meu ‘tio’, não. Ele ficava extasiado com aqueles enredos e rimas. Um rapaz pobre, expulso pelo próprio pai, sai pelo mundo sem ter nem o que comer, mas o destino vai lhe destinando surpresas. Por fim, rico, retorna à casa paterna e ainda tira da miséria o pai cruel.

Os valentões iam, desde brigas com onças, nos matos onde viviam, até brigas em que se metiam nas cidades, por se indignar com injustiças e coisas erradas. Um deles (preso porque socorreu uma criança que apanhava de um adulto desalmado e acabou se metendo numa briga feira e ferindo feio o agressor), acabou revirando toda a cadeia. Com sua própria força, forçou as grades da cela, libertou todos os presos e deixou encarcerados os soldados e o próprio delegado. “Bem feito!” Exclamava o meu ‘tio’, satisfeito, ao final, com o “romance” e com a leitura do menino que sabia ler bem.

Outro tipo de valentões era o dos que enfrentavam monstros. Um ‘cabra’ desses deu cabo de uma serpente que, além de descomunal no tamanho, pasmem, tinha sete cabeças. Deu trabalho, mas o ‘nosso’ herói, mesmo depois de muito enroscado, conseguiu se desvencilhar e cortar cada uma daquelas cabeças que, por si só, prometiam engolir por sete vezes o destemido lutador. E ele, com muita habilidade e rapidez, foi se safando. Em vez de ter sido devorado, escapou sete vezes e matou as sete vidas da serpente monstrenga.

As serpentes se foram, os heróis, também. As mudanças, as cidades, as décadas... Mas, não se foram as recordações e as lembranças que fui acumulando de ter me valido umas quantas vezes de ser ‘um menino bom de leitura’. Numa dessas, vida difícil numa das cidades, meu pai, que já não era mais lavrador, mas, pedreiro, pegou um ‘serviço’ grande e precisou de levar todos os filhos como ajudantes, até eu fui convocado. Aconteceu que, na hora de prover tijolos para a fieira, um deles caiu sobre uma das minhas unhas. Doeu muito, a unha ficou escura, apostemou, veio a cair. Em casa, já no primeiro dia de padecimento, tanta dor, valheu-me minha mãe: “Ele não vai, ele não leva jeito para essas rudezas, ele é mais é das leituras”.

De algum modo, com as leituras, eu também fui, como um herói modesto e silencioso, vencendo as serpentes de sete cabeças que foram aparecendo pelos meus sete caminhos, pelas minhas sete cidades, pelas minhas sete vidas... Mas, então, das minhas sete profissões, uma delas veio ser a de escrever. De tanto ler, também peguei gosto pela escrita. Houve um tempo, até bem longo, de jornalista. Houve o tempo, do professor concursado. Chegou o tempo das memórias. Escrever, como um Marco Polo depois de um mundo viajado, mais do que um, O livro das maravilhas.

Conversando outro dia, com um conterrâneo, sobre esses passados de casos e aventuras, ele me contou de um avô que, a despeito de suas condições, interioranas e modestas, orgulhava-se de uma competência. A vida do sertanejo, por si só, é uma vida de emendas, de frases de desafios seguidas de outras de vitórias, ligadas por conjunções adversativas. Têm adversidades para contar, mas, também as superações. Contou-me, em várias vezes em que nos encontramos, desse seu avô heroico: “Não leio bem, mas sou bem algarismado”. Referia-se ao fato de ter aprendido a compensar. O que não lhe favoreceu a leitura, desenvoltura na tabuada. Até, de trás pra frente. Nove vezes oito, 72. Ou, oito vezes nove, 72, do mesmo jeito.

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