Luiz Martins da Silva –
O caso me foi contado por Ney Braga, um dos mais influentes políticos do Paraná. Foi prefeito de Curitiba, deputado federal, senador, governador, ministro da Agricultura, da Educação e presidente da Itaipu Binacional.
A oportunidade de conhecer o referido folclore político se deu pelas circunstâncias de eu ter sido “repórter setorista” de Educação por dois veículos de imprensa, o Jornal de Brasília e, depois, O Globo.
Por força da função, eu vivia batalhando entrevistas com ele, pois, além de ministro ele era, sobretudo, um político do “alto clero” e, como tal, muito bem informado, numa época em que ter fontes era tudo. O regime era fechado e as informações se dividiam, como sempre, em oficiais, extraoficiais e de bastidores, ou seja, on the record (para publicar); off the record (para não publicar); e com base no sigilo da fonte (para publicar, mas sem revelar a origem pessoal ou dar indícios reveladores da procedência).
Ney Braga era uma personalidade rica em experiência e talentos, um deles, conquistar a simpatia das pessoas. Era um ser humano de afável trato e quando o conheci ele já tinha a primazia dos relatos, vasta biografia em postos e realizações, mas também uma trilha paralela de histórias e História. Contava-as, não por narcisismo, mas por didatismo ou, simplesmente, pelos aspectos irônico ou hilário de uma boa parte. Orgulhava-se, sobretudo, de “ter feito” uma infinidade de coisas, desde ‘levar a luz’ a comunidades carentes, urbanas e rurais, a conseguir aprovação de relevantes projetos nacionais.
Revelou-me ter escapado por um triz de ser “cassado” pelo regime de 64. O regime imposto não tolerava lideranças políticas proeminentes, mas ele era general, embora da reserva. Lembro-me de que um aspecto desagradável ao militarismo era, possivelmente, uma proximidade dele com Jânio Quadros em tempos remotos. Acabou sendo convidado para integrar os altos escalões administrativos. De esquerda é que nunca fora.
Ney Braga situava-se entre os liberais e democratas (Partido Democrata Cristão). Não se importava em ser considerado uma “raposa”. Encarava isto muito mais por ser portador de carisma; ser um orador eletrizante em comícios memoráveis; e ser criativo em conjunturas desfavoráveis, como num momento em que não dispondo de condições de enfrentar à altura um poderoso adversário político, valeu-se de um simples e barato recurso: mandou imprimir um “santinho” para uma de suas campanhas, com a caricatura de Jânio, afirmando: “O homem é Ney!”. Só isto lhe rendeu uma popularidade extra.
Militar de carreira e formação superior (Escola Militar do Rio de Janeiro e professor do CPOR em Curitiba), Ney Braga quase foi para a Itália como expedicionário. Levaram em conta a sua situação de viúvo recente com quatro filhos.
Não tardaria a se dedicar de corpo e alma à sua mais forte vocação, a política, em toda a sua acepção, especialmente a política interiorana, no sentido provinciano e no sentido do ‘homem que faz’. No entanto, para além de obras, sua maior satisfação era estar nos palanques desde lá ir até à rouquidão no intuito de conquistar os corações.
Chegar ao Ministério da Educação e Cultura não estava nos planos, mas o MEC sempre moeda de troca nos mais variados governos, democráticos ou não, tal o gordo orçamento e capilaridade distributiva por todo o território nacional. O MEC sempre foi visto pelos políticos como uma das melhores retribuições no contexto das alianças e composições partidárias.
Mesmo sem ter um perfil de educador ou de um intelectual, Ney Braga foi um bom gestor e se fez cercar de “artistas”, especialmente do meio cinematográfico. Servindo a um governo ditatorial, mas com promessas de “redemocratização” (general Ernesto Geisel), o MEC dirigido por Ney Braga foi um oásis de boa convivência com o meio estudantil, com a área da Cultura e até mesmo com o austero Conselho Federal da Educação.
Aos palanques não voltaria mais e certamente não saberia lidar com o novo meio de eletrizar as massas, a televisão. Talvez, por isso mesmo fosse tão nostálgico e pontuasse as conversas com as lembranças de quando se fez uma lenda em popularidade no seu Estado. Quando de uma entrevista a este narrador, então um jovem repórter, conversamos durante uma viagem de avião. Alegando falta de espaço na agenda cotidiana, o ministro me convidou para viajar com ele ao interior de São Paulo. Os ministros viajavam em “jatinhos”, com alimentação, conforto e a companhia do piloto, copiloto, um ou dois assessores e algum convidado.
Uma das manhas de repórter é deixar a fonte falar do que quer, por vezes, desabafos e até esclarecer que papel desempenhou em momentos cruciais da História, esta senhora que nem sempre poupa a reputação de seus protagonistas, especialmente em relação a posicionamentos polêmicos. No caso dele, optou por apoiar o movimento que derrubou João Goulart. Como setorista de educação e atuando já há mais de uma década do Golpe, minha tarefa ali era extrair informações atualizadas em relação aos campos da educação, cultura e política em geral.
Em ocasiões como a que descrevo, ouvi com prazer relatos de um homem já madurão e saudoso dos tempos em que era reconhecido como “um personagem do povo”, quantas vezes carregado pela multidão. Seus comícios eram frequentados por pessoas e grupos que se deslocavam até de outros Estados para ouvi-lo e aplaudi-lo. Como bom político carismático, sabia da importância de cativar as pessoas, mesmo quando de uma simples abordagem pessoal.
Ocupou-se, então, de me contar como se deu a saia justa que o levou a ter de fazer um comício para um único eleitor, mas que, para votar nele, pediu um discurso exclusivo. Algo equiparável a um fã de um grande astro da música popular demandar de seu ídolo uma apresentação privilegiada. Rememoro, como se fosse na voz do velho político, o que se deu:
– Terminado um comício [acho que foi em Paranavaí], abriram passagem entre a multidão, que já se dispersava, para que eu pudesse me retirar. Fui com alguns companheiros até um bar, para bebermos água mineral. O bar estava vazio, aliás, não de todo, havia um homem, visivelmente bêbado, que imediatamente me reconheceu e me acolheu com grande espalhafato. E ressaltou apreciar por demais a minha capacidade de orador. Afirmou que me ouvir falar num palanque era uma atração imperdível. Assegurou ter votado em mim em várias eleições, mas que para fazer isto novamente eu teria de fazer um discurso para ele:
– O doutor vai discursar para mim. Aí, eu voto de novo no doutor. Mas, o doutor vai ter de fazer um discurso para mim.
– Mas, de minha parte – disse o ministro –, eu também apresentei outra condição: ‘Está bem, eu faço um discurso para você, mas se você for capaz de dizer qual é o meu nome por completo’. Ao que ele respondeu, na bucha: Ney Aminthas de Barros Braga.
– Extenuado, suado, com sede e no extremo das cordas vocais, encontrei um fio de voz e fiz para aquele cidadão um comício individual, mas lhe dediquei a mesma pompa, o mesmo entusiasmo, o mesmo respeito e os mesmos compromissos de campanha. Ele me aplaudiu, de pé, ou melhor, quase. Cambaleava de embriaguez e de um certo delírio, repetindo sem parar: “O doutor discursou para mim!”.