Romário Schettino –
O Juiz Carlos Maroja, da Vara do Meio Ambiente, Desenvolvimento Urbano e Fundiário do Distrito Federal, expediu liminar suspendendo o Edital nº. 18/2021, da Secretaria de Cultura do DF, destinado à escolha do projeto arquitetônico para o Museu Nacional da Bíblia. A informação foi divulgada hoje (22/8) pelo blog do jornalista Chico Sant´Anna (*).
A deliberação do juiz atende ação apresentada pela deputada distrital Julia Lucy (Novo) e determina a paralisação de todos os atos que digam respeito “ao planejamento e execução de um museu na área do Eixo Monumental.”
Na ação pública, a parlamentar alega que a obra do Museu da Bíblia é “faraônica”, orçada em mais de R$ 26 milhões, que não foi precedida de audiência pública; e que o gasto de R$ 122 mil, a serem pagos com recursos públicos, “para a escolha de um projeto desnecessário em plena pandemia implica em inversão na prioridade da alocação de recursos já escassos”.
A Lei Orgânica do DF, em seu artigo 362, inciso II, estabelece como pré-requisito de validade do processo decisório envolvendo patrimônio cultural a realização de audiência pública.
A deputada Julia já disse ao Correio Braziliense que é cristã, mas acha que a “construção de um museu durante o período pandêmico não dá!” Ela acha também que a “prioridade do GDF deveria ser a instauração da CPI do IGES, a reforma do Teatro Nacional, a revitalização do Cine Itapuã. Prioridades, governador [Ibaneis Rocha], prioridades”.
O Governo do Distrito Federal alegou, em sua defesa, que “a mera realização de estudos para o museu, que fora idealizado por Niemeyer e previsto desde 1995, não representa prejuízo para a Administração ou ao interesse da coletividade”. Disse ainda que uma decisão da Justiça impedindo a continuidade do projeto “impediria o GDF de incentivar e promover o turismo; que o museu criará postos de trabalho; que as experiências dos museus da Bíblia situados em Barueri e Washington – DC demonstram a atratividade e lucratividade desse tipo de museu; que o museu terá relevância cultural e histórica”. O Ministério Público do DF optou por ficar do lado do GDF, contra uma suspensão do projeto do Museu da Bíblia.
O que o governador Ibaneis não diz é que o Teatro Nacional teria muito mais importância para a cultura e o turismo da cidade do que um museu nitidamente neopentecostal, evangélico, fora de propósito e nitidamente inconstitucional.
O juiz Carlos Maroja, em sua sentença, ressalta que o Plano Piloto é tombado internacional e nacionalmente, que a implantação do Museu da Bíblia pode representar a descaracterização “de outro monumento”, o próprio Eixo Monumental, e lembra que a sociedade de Brasília tem questionado a construção desse novo monumento “em dias em que a população lastima que um outro monumento nacional do porte de um Teatro Nacional apodrece há anos, inacessível tanto ao sempre carente setor cultural candango como a uma população ainda mais carente de arte e cultura”.
“O projeto (do Museu da Bíblia) submetido à impugnação neste feito impacta diretamente em bem cultural tombado como Patrimônio Histórico e Mundial da Humanidade: a concepção urbanística de Brasília, mais notadamente em sua escala monumental, a qual repousa exatamente sobre o leito do Eixo Monumental […]. É simplesmente inconcebível que qualquer autoridade pública se volte contra os efeitos do tombamento, que é, repita-se, medida de proteção a Brasília que vincula todos os poderes públicos à obrigação jurídica de protegê-la adequadamente.”
“A mera vontade política do Governador do Distrito Federal – continua o texto da liminar – não é elemento suficiente para a execução de “atos que envolvam modificação do patrimônio arquitetônico, histórico, artístico, paisagístico ou cultural do Distrito Federal”. Para que qualquer ato deste porte – inclusive estudos prévios, diga-se de passagem – a apreciação em audiência pública é obrigatória, […]não se pode concluir, a priori, que a instalação de museu da Bíblia seja algo necessariamente afrontoso ao monumento (Brasília) tombado. Mas, para que tal aspecto primordial seja devidamente enfrentado, torna-se imprescindível, antes de mais nada, auscultar a sociedade sobre a ideia, sob pena de se empreender alteração possivelmente temerária do monumento nacional.”
Museu da Democracia - A sentença também faz menção ao Memorial da Liberdade e Democracia – visto por alguns como museu dedicado a João Goulart. Aprovado no governo de Agnelo Queiroz, a instalação desse memorial, que visava abrigar os registros e a documentação dos anos de chumbo da Ditadura Militar, teve a decisão revogada pelo sucessor, Rodrigo Rollemberg, mesmo tendo sido aprovada pela Câmara Legislativa e de já contar com recursos federais e de patrocinadores privados. O tapume e a pedra fundamental da obra projetada por Niemeyer tiveram que ser retirados.
“Um fato notório ocorrido nos idos de 2015 reforça a convicção da necessidade do prévio e amplo debate sobre qualquer intervenção no Eixo Monumental: na época, cogitou-se instalar ali um Museu dedicado a João Goulart. Após a percepção da intensa rejeição social à intervenção sobre a escala monumental (e não necessariamente à figura histórica que seria homenageada), numa discussão em muito similar à que atualmente envolve o projeto mencionado na demanda, o governo retratou-se da decisão. Se não pelo respeito às diretrizes constitucionais, a lição do evento histórico recente recomendaria, no mínimo por cautela, que os atos relativos à intervenção no monumento nacional fossem precedidos de oitiva da população”, registra a sentença.
Como a decisão é provisória, a próxima etapa será o julgamento do mérito. Para isso, o GDF será chamado para apresentar novos argumentos. É provável que o governo tente derrubar a liminar numa instância superior, antes mesmo do julgamento do mérito.
O curioso é que recentemente o próprio secretário de Cultura do DF, Bartolomeu Rodrigues, mesmo sendo o responsável pela pasta que organiza a seleção para escolha do projeto arquitetônico da obra, afirmou ao ator. dramaturgo e diretor de teatro, Alexandre Ribondi, numa live da Casa dos 4, ser contra a construção do Museu Nacional da Bíblia, que não tinha projeto museológico, nem sabia qual seria o acervo deste monumento.
Essa live da Casa dos 4 teve ampla repercussão em todos os outros meios de comunicação, numa demonstração de que as novas tecnologias podem interferir positivamente no debate coletivo. O polêmico Museu da Bíblia é apenas um dos temas relevantes para a cultura brasiliense. Oxalá a discussão continue ocupando espaços cada vez mais democráticos, gerando resultados e avanços significativos na cultura local e nacional. E que as trevas deem lugar à luz o mais rápido possível.