Romário Schettino –
Já são inúmeras as lições que a pandemia do coronavírus trouxe às sociedades e aos governos do mundo inteiro. Além de demonstrar que a solidariedade é um bem a ser preservado a todo custo, o vírus veio embalado com desastres econômicos jamais vistos, capazes de ressuscitar velhas teorias do bem-estar social garantido pelo estado. O neoliberalismo pós-guerra sentiu o peso da paralisação global. Está tudo contaminado.
Foi preciso um diminuto vírus surgir das entranhas da natureza para mostrar que sem consumo não há produção, sem produção não há emprego, sem emprego não há consumo e não há riqueza. Na prática, este ciclo tão elementar nunca foi respeitado completamente. A grande parcela pobre da população sempre foi considerada uma reserva desprezível, um refugo humano. A opção pela concentração da riqueza em poucas mãos e a distribuição de migalhas após e durante guerras insanas em várias partes do mundo terão que ser repensadas por aqueles que conduzem os destinos da humanidade.
A verdade é que sem proteção social não há desenvolvimento sustentável. A situação é tão aflitiva que um vendedor de sorvete em São Paulo disse à reportagem do site Uol que, mesmo fazendo parte do grupo de risco do Covid-19, aos 65 anos de idade, ele não tem medo de contrair a doença e que não lhe sobram muitas opções senão trabalhar todos os dias. "O que você quer que eu faça? Se não morrer desse vírus, morro de fome. Não posso parar de trabalhar", respondeu.
Iguais a esse vendedor, existem milhares de brasileiros em todas as cidades do país. Nas favelas do Rio de Janeiro uma rede de solidariedade surgiu entre os moradores da Rocinha, independente do Estado, para tentar salvar vidas. A pequena ajuda financeira prometida pelo governo não chegará a todos os necessitados.
Algumas iniciativas do Ministério da Saúde incluem o Sistema Único de Saúde (SUS), na tentativa de salvaguardar o sistema público do desastre a que vinha sendo submetido pelos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro. Se não fosse o coronavírus o SUS já teria sido desmontado e seus serviços entregues à iniciativa privada, da mesma forma que estão entregando as riquezas nacionais ao capital estrangeiro. Em meio à crise do coronavírus Paulo Guedes pede pressa na privatização da Eletrobras.
PEC da Morte – É sobre essa tragédia que Fernando Pigatto, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), vem falando desde 2016. Ao portal Carta Maior, Pigatto disse esta semana que a Emenda Constitucional 95, que congelou os gastos públicos por vinte anos, continua sendo a “PEC da Morte”.
O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse à imprensa que serão destinados cerca de R$ 10 bilhões emergenciais para o enfrentamento à pandemia. O valor não alcança nem metade do que a Saúde já perdeu desde que entrou em vigor a EC 95, que impôs um teto de gastos e congelou investimentos pelo Estado até 2036. De acordo com um estudo da Comissão de Orçamento e Financiamento (Cofin) do Conselho Nacional de Saúde, o prejuízo ao Sistema Único de Saúde (SUS) já ultrapassa os R$ 20 bilhões.
“Só no orçamento deste ano (2020) serão quase R$ 5 bilhões a menos. Agora não adianta ter medida paliativa. Temos que ter consciência de que esses bilhões vão fazer falta para enfrentar o coronavírus, mas não só ele. Os problemas da saúde pública no Brasil vêm de muito tempo”, afirma Pigatto.
O certo é que desde que a EC 95 foi aprovada o SUS vem sendo desfinanciado. O CNS é amicus curiae numa Ação Direta de Inconstitucionalidade que está no Supremo Tribunal Federal (STF). “Em 2018 fizemos uma marcha em Brasília e levamos caixas e caixas de assinaturas ao STF contra a emenda. Em fevereiro do ano passado pedimos ao presidente Dias Toffoli sua prioridade na pauta, mas até hoje isso não aconteceu. No Congresso Nacional, nos reunimos com a Frente Parlamentar em Defesa da Saúde, fomos à Comissão de Seguridade Social e Família e ouvimos de vários parlamentares, inclusive de deputados e senadores que haviam votado a favor da PEC, que já estavam se arrependendo, porque estavam vendo seus efeitos. Em vários municípios o índice de mortalidade infantil voltou a crescer”, lamenta Pigatto.
A ministra Rosa Weber, do STF, pediu informações ao governo sobre os efeitos da Emenda do Teto de Gastos no combate à epidemia e deu prazo de 30 dias para o seu cumprimento. Boa iniciativa, mas pode ser tarde demais.
Passada a pandemia, ainda sem data para acontecer, o Brasil não será o mesmo. A explosão das contas públicas pode até ser contida, mas o comportamento de ministros como Paulo Guedes e de parte da imprensa que endeusa a mão invisível do mercado não terão como esquecer os pobres da sociedade e terão de admitir que projetos como o bolsa família não é só fundamental, como tem de ser ampliado, sob pena de crescer exponencialmente o número de miseráveis no país.
Marcha à ré – Domenico De Masi, sociólogo italiano, autor de “Ócio Criativo” e “Futuro do Trabalho”, escreve que a “marcha à ré e os freios que a cultura neoliberal se recusou obstinadamente a usar agora foram desencadeados: não graças a uma revolução violenta, mas sim a um vírus invisível que um morcego soprou sobre a sociedade opulenta, obrigando-a a se repensar”.
“Essa crise histórica, com seus mortos e tragédias, se por um lado nos leva à recessão, por outro nos lembra que, para evitar uma crise irreparável, em vez de políticas de austeridade, é preferível dar lugar aos investimentos públicos maciços, ainda que isso leve ao déficit público”, ensina De Masi.
Segundo o sociólogo italiano, o livro “A Peste (1947), obra-prima profética de Albert Camus, talvez possa nos ajudar nesse repensar. Naquele romance, a ciência era protagonista, ou seja, o médico Bernardo Rieux, ocupado até o fim, como médico e como homem, de socorrer os contagiados, enquanto ´o cheiro de morte emburrecia a todos os que não matava´”.
“Hoje, nós também, como o nosso tão humano irmão Rieux, estamos presos num limbo entre o pesar e a esperança, no qual temos que aprender que ´a peste pode vir e ir embora sem que o coração do homem seja modificado´; que ´o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, que pode permanecer adormecido por décadas nos móveis e nas roupas, que espera pacientemente nos quartos, nas adegas, nas malas, nos lenços e nos papéis, que talvez chegue o dia em que, infortúnio ou lição aos homens, a peste acordará seus ratos para mandá-los morrer numa cidade feliz”, conclui Domenico De Masi.
Nessa mesma linha em busca de repensar tudo, o economista e filósofo francês Serge Latouche propõe abandonar a sociedade de consumo com um decrescimento planificado, progressivo e sereno. Quem sabe?