Angélica Torres -
“Mais livros, menos armas”. Esse slogan, que virou um mantra do Brasil humanista, progressista, esperançoso, condiz muito com a história da cabeleireira cearense-brasiliense Rosa Ventura. Espiritualistas não costumam desprezar encontros fortuitos que têm algo de mágico – “um lance de dados jamais abolirá o acaso”, diria Mallarmé. Por que iríamos a nos topar, assim, por acaso, senão para ela me contar que aprendeu a amar os livros, literalmente, pelas mãos de Raquel de Queiroz (a primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras e a receber o Prêmio Camões)?
“Você é jornalista e escritora, não é? Pois, sabe, eu tinha nove anos, quando fui com uma tia, ela também ainda uma menina, à fazenda Junco, da Raquel, em Quixadá, onde eu nasci. Morávamos numa fazenda não muito longe”, Rosa começou a contar sua história, por si, romanesca. Foram recebidas pela escritora, que quis saber quem era aquela menina loirinha, nunca antes vista em sua fazenda. E as duas foram gentilmente convidadas a entrar no casarão pra tomarem o café da manhã.
Rosa se impressionou com o tamanho da mesa e com as muitas gostosuras ali expostas. “Foi a primeira vez que comi pão francês, porque só tínhamos farinha de tapioca e de cuscuz na casa da minha mãe, que na verdade era a minha avó, que me criou; ela era a cozinheira da fazenda de Raquel”. A escritora era um bom ser humano. Tratava os empregados com educação e respeito, todos lá gostavam dela, Rosa conta.
Quando as meninas já iam embora, Raquel de Queiroz voltou à sala com uma pilha de livros nos braços, perguntando se elas gostavam de ler. Tímidas, nem responderam, mas saíram levando alguns volumes, cada uma. Entre os da pequena Rosa Ventura estava um exemplar de O Quinze, o romance de estreia da escritora, que lhe abriu as portas do reconhecimento no meio literário.
Sobre ele, aliás, o poeta e também acadêmico da ABL Antonio Carlos Secchin relembra em depoimento publicado na recém-lançada revista Bric à Brac, de celebração aos 100 anos da Semana de Arte Moderna. Diz Secchin que Raquel era ainda uma menina, quando publicou O Quinze, em 1930, sobre a seca de 1915. “(...) É importante, porque esse livro se insere diretamente no ciclo da Geração de 30 do romance nordestino, que vai ter Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, a própria Raquel e, antes dela, José Américo de Almeida (...)”.
Essas qualidades do famoso romance, entretanto, não cativaram a menina, que só abriu os seus livros para ler quando passou a morar em Brasília, na adolescência, buscando melhores chances de vida do que aquela, árida, na roça. “Não gostei d’O Quinze. Achei difícil, parei e não retomei mais. Mas li os outros e o que eu mais gostei foi um de espiritismo”. Raquel de Queiroz não era espírita, mas esse livro estava por lá, na casa dela.
Na foto, Rosa adolescente, formada em costuras.
Rosa também não se tornou espírita, mas reconhece que aquele encontro com a escritora a levou a buscar por mais livros. Não é comum que cabeleireiras entrem em livrarias e que saiam com um volume para ler no ônibus, indo ou voltando do salão de beleza onde trabalham, para casa.
Pois essa personagem era a Rosa Ventura, que se sentiu chamada por um livro sobre o Buda. Leu, gostou e acabou comprando outros mais, de mestres budistas, mas também de outros temas. O resultado é que ela própria passou a frequentar um templo na L2 Sul, tornando-se uma praticante das lições do budismo.
Lições de leituras - Esse percurso, iniciado no dia em que conheceu Raquel de Queiroz, não à toa explica a aura da “personagem” Rosa, desde a amabilidade com que trata as pessoas ao dom de fazer tudo bem feito na profissão, com gosto, serenidade zen e uma notável honestidade com suas freguesas.
Explica também, de acordo com seu relato, as pazes feitas com a mãe, com o passar do tempo. Rosa foi fruto de uma relação indesejada pelo avô, ao saber da gravidez de sua filha. Os pais de Rosa não puderam se casar, proibidos por ele. Mas a avó, a cozinheira da fazenda Junco, não aceitou a imposição do marido e acolheu a bebê, entre os seus 19 filhos. (Foto de Rosa Ventura: a família reunida)
Mais tarde, sua mãe se casou de novo e não a levou para viver junto a ela. A mágoa, no entanto, se resolveu com a idade e certamente que também com os sábios ensinamentos dos livros lidos e a sua sensibilidade para interpretá-los.
Um dos desfechos inesperados nessa história toda foi que os pais legítimos de Rosa se reencontraram, quando sua mãe enviuvou, e se casaram. Isso, após anos sem nunca mais terem se visto. Estão juntos há mais de duas décadas. Tem ou não tem a mão invisível de uma Raquel de Queiroz por trás desse enredo de origem rural, desembocado na modernista capital do país?
Mas a protagonista da história real, como deve ocorrer com uma boa pupila, suplantou a mestra – que os céus a tenham, apesar de seu erro de raciocínio e de cálculo: Raquel apoiou a ditadura militar que, todos sabem, levou o Brasil a viver o aperreio de longos 21 anos de descaminho.
Já Rosa – que viu falir na pandemia o salão de beleza de que era gerente e acomodou um seu pequeno salão no singelo espaço da ourivesaria do companheiro, numa sobreloja da cidade, morando hoje ali nas adjacências com os cinco filhos que ambos criam juntos, há treze anos – pois, em sua literária história e junto com sua família, Rosa Ventura sonha com um Brasil pacífico, progressista, justo e inclusivo para os mais pobres.
“Aqui em casa somos todos Lula. Quem diz que precisa de armas ignora precisar mesmo é de ler bons livros e se educar, pra viver em coletividade com dignidade. Hoje leio grandes autores que incentivam a sermos mais humanos, amorosos, respeitosos uns com os outros, jamais a pegarmos em armas, que é o que ‘o outro’ estimula, imitando Hitler”, diz.
Venturosa pupila, pessoa especial, interessante, essa Rosa.