"A vida é de quem se atreve a viver".


Essa publicação da Editora UnB é a primeira edição completa em língua portuguesa que, além de reunir pela primeira vez, em um só volume, os 40 fascículos montados pela própria poeta, contém as variantes dos poemas e as alternativas de palavras inseridas por ela que modificam suas versões anteriores
Emily Dickinson na íntegra

Angélica Torres (*) –

Editora UnB publica Poesia Completa – Volume I – Os fascículos, contendo os cerca de 1.800 poemas da poeta americana Emily Dickinson, que faria hoje (10/12) 190 anos.

A despeito da infinitude das coisas aos sentidos, nosso imaginário sofre repetidos desgastes na faina do dia a dia. Mas eis que chegam os poetas com o seu visionarismo, sua estética, seu estilo, o desvio de percepções, os deslocamentos na escrita e um mundo renovado se descortina em imagens, sons, ritmos, ideias, pensamentos. Inusitados, mesmo após séculos, proporcionam outros horizontes e perspectivas a leitores abertos e atentos, enquanto vão lhes “ensinando” a captar seu universo de palavras, sonoridades, visões... e o céu também. Emily Dickinson, com seus 1.800 poemas escritos ao longo de três décadas do século 1800, é prova desse condão que poetas extraordinários têm de tirar o pó da vida chã, que nos embaça a vista, através dos prismas que veem nas escuridões da existência.

Lançado virtualmente pela Editora UnB no último 24 de novembro, em edição bilíngue, Poesia Completa Emily Dickinson – Volume I – Os fascículos, traz em 883 páginas o resultado do esforço de tradução da obra dessa antológica poeta norte-americana por Adalberto Müller, professor de Teoria da Literatura na Universidade Federal Fluminense, posdoc em cinema pela Universidade de Yale e também poeta. A especialista Cristanne Miller assina o prefácio à edição brasileira de Poesia Completa.

Adalberto Müller, aliás, consolidou esse projeto de acordo com a edição de Cristanne Miller em Emily Dickinson: Poems as She Preserved Them, que saiu em 2016 pela Harvard University Press. A parceria de ambos começou em 2015, num congresso de estudiosos da obra de Dickinson, em Paris. Dois anos antes, ele começara o trabalho das traduções e em 2018, aceita o convite de Cristanne M. para uma estada como professor visitante na Universidade onde ela atua. Professora titular da Universidade Estadual de Nova York, em Buffalo (E.U.), esta especialista é também autora de estudos de outros poetas modernistas dos séculos 19 e 20, como Marianne Moore.

Embora Emily Dickinson tenha sido traduzida e publicada em Portugal, como também no Brasil (e por nomes de peso, como Manuel Bandeira e Cecília Meirelles, Mário Faustino e Paulo Mendes Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, Ana C. Cesar e outros mais), a edição que sai com o selo da Editora UnB é uma empreitada inédita: é a primeira completa em língua portuguesa, além de reunir pela primeira vez, em um só volume, os 40 fascículos montados pela própria poeta, contendo ainda as variantes dos poemas e as alternativas de palavras inseridas por ela, que modificam suas versões anteriores.

É preciso destacar que a viabilização de Poesia completa se deu por sensibilidade editorial e influência da diretora da Editora UnB, Germana Henriques Pereira. Mas a compra dos direitos de publicação da poesia de Dickinson no Brasil, pela Universidade de Brasília, implica também o reconhecimento da expertise de um ex-aluno. Adalberto Müller cursou, de 1989 a 2006, a graduação e o mestrado no Departamento de Literaturas.

Voltado para especialistas, mas também para leigos, o livro é, portanto, a materialização do empenho intelectual acumulado de acadêmicos pesquisadores na obra de Dickinson. É também consequência da dedicação de técnicos da área editorial e gráfica – aí inclusa a participação da Unicamp. De feição clássica, a edição do Volume I sai com ilustrações nas capas e na falsa folha de rosto, de espécies florais, plantas e ervas que a poeta cultivava no jardim da casa de seu pai, Edward Dickinson, um político de convicções liberais e abolicionistas.

Perfil - Emily Dickinson viveu 56 anos (de 10/12/1830 a 15/05/1886) com a família em Amherst, cidade interiorana de Massachusetts, e a partir dos 30 anos, solteira até sua morte, dedicou-se inteiramente à poesia, ao culto à jardinagem, que embelezou vários de seus poemas, e ao hobby de fazer pães. Teve sólida educação intelectual: leu obras de filosofia, botânica, ciências, história, geografia e bebeu da fonte de poetas clássicos da língua inglesa, como William Shakespeare e Elizabeth Barrett Browning a quem reverenciava especialmente, e William Wordsworth, John Keats, Longfellow e o irlandês W. B. Yeats, entre outros.

Esses luminares do Romantismo, além de seus compatriotas transcendentalistas Emerson e Thoreau e também Virgílio, cuja obra ela leu em latim ainda na escola, refletiram-se no substrato dos temas explorados em sua poesia: os estados de consciência e agudezas da mente e da alma, a morte e a eternidade, a solidão e a Natureza, as causas humanistas e o amor. Emily Dickinson, que nunca foi editada em vida, mas compartilhava seus escritos com familiares, amigos, amantes de poesia e críticos, perde somente para Shakespeare, entre os poetas mais traduzidos de língua inglesa. Seus versos não param de despertar o interesse de acadêmicos e de leigos, apesar de identificada como uma “poeta difícil” – ou talvez, também, por isso mesmo.

Da poética - A síntese é um elemento capital em sua poesia. Os poemas são curtos em sua maioria e, por sofisticada tessitura, exigem reflexão. Adalberto M. assevera que traduzi-la requer não a transcriação, mas uma reescrita em condições análogas, considerando a relação entre imagem, ritmo e pensamento em sua poesia. O professor-tradutor ensina que os poemas dela se sustentam sobre o common meter, em que se alternam versos iâmbicos de oito e seis sílabas, às vezes de sete e seis. Na quase totalidade de seus poemas, Dickinson intercala versos brancos com rimas que caem no antepenúltimo e último versos e ao se valer da sonoridade típica do inglês da Nova Inglaterra, obtém um não menos complexo efeito em suas estrofes.

No prefácio, Cristanne Miller destaca o elemento que elevou a obra da poeta à condição de vanguardista: a liberdade sintática que tomou em seus escritos, com as pontuações originais, a métrica irregular, a cadência fragmentária, uma não preocupação com as rimas, enfim, um tratamento nada usual entre os poetas de seu tempo. Ao romper com as regras formais, Emily D. sobressai-se no elenco dos astros da poética do século 18, que com suas inovações estéticas anteciparam e impulsionaram o Modernismo. Nesse panteão, quase que como uma heroína num século (no mundo) pesadamente patriarcal, ela figura entre os seus patrícios Walt Whitman, Ezra Pound, T.S. Eliot e outros, mundo afora, como Baudelaire e Mallarmé, Rubén Dario e Souzândrade, Fernando Pessoa e Maiakovski.

Emily: dicção, sonoridade, percepções

Essa mulher e poeta admirável, que construiu uma obra aberta, que se move, que se apresenta como que inacabada e por isso possível de múltiplas interpretações, era como na definição de Pound uma antena sensível ao que acontecia a seu redor, apesar de caseira, recolhida, que foi. Não só por ter tido o seu modo peculiar de lidar com as questões metafísicas, ou por ter nascido em uma família rica e de surpreendentes posturas progressistas para a região e para a época, mas por ter sido exímia pianista e de ouvido sensível aos sons do seu tempo, Dickinson pôde ir além da tradição estilística e se antecipar aos futuros movimentos poéticos, ao inaugurar uma nova sonoridade na poesia.

Interessante ler seus manuscritos em voz alta e perceber o que ela fazia com o ritmo, por exemplo, dos sonetistas que cultuava – Shakespeare e Browning – para, em alguma estrofe ou versos soltos em seus poemas, desarrumar a cadência da sequência e causar uma estranheza e dificuldade a quem não percebia/percebe sua mão intuitiva nos teclados do cérebro. Quem escreve versos e ouve músicas com frequência sabe que não necessariamente sofrerá influência de letras das canções, mas que certamente os diversos ritmos, a toada, o andamento melódico, afetam, sim, subliminarmente, suas criações poéticas. É a força natural da melopeia.

Assim, Dickinson e suas antenas poderosas captaram um som diferente daqueles a que o Ocidente, com sua hegemônica cultura branca, dava ouvidos. Eram sons que ecoavam de canções populares e hinos religiosos pelo país, nas vozes dos escravos. Esses lamentos, de estruturação musical, inflexões melódicas e ritmias africanas, entoados durante o trabalho nas plantações de algodão e em seus cultos nas igrejas, logo levariam ao surgimento do negro spiritual, do ragtime, do blues, do jazz, do soul, que tanta beleza agregaram ao universo sonoro do planeta.

Pois me arrisco a dizer que, tal como Mallarmé antecipou em um século a modernidade gráfica na poesia e até mesmo no uso do espaço da tela do computador, Emily Dickinson cantou em sua poesia, também quase um século antes, a pedra do jazz, com seu tratamento melódico dissonante e ambíguo nascido de um misto entre a tradição musical africana e europeia, no contexto da cultura afro-americana.

Veja Cristanne Miller no prefácio, pág. 15: “Dickinson é primariamente uma poeta do ouvido. É o extraordinário domínio de combinar ritmos métricos e sintáticos e múltiplos modos de repetição sonora (rima, aliteração e assonância) com a significação (...)”. E Adalberto Müller (em Cronologia, pág. 815): “1859 – Catherine Scott Turner (Kate Anthon), ex-colega de ginásio, visita ED em Amherst. Os Evergreens se tornam cada vez mais um salão cultural, sob o comando de Susan. Emily entretém os convidados, cantando ao piano, inclusive cantando negro spirituals.”

A Guerra Civil – Emily Dickinson foi uma personagem tão interessante e atenta que não se furtou em contribuir com a História, nas reflexões registradas em sua singular poesia sobre os horrores da Guerra da Secessão, que dividiu os E.U., de 1861 a 1865, em torno da questão da escravatura. Mais da metade de seus escritos foram produzidos durante esses anos. Cristanne Miller enfatiza que “ela escrevia explícita e metaforicamente sobre a guerra em seus poemas”, embora a crítica só tenha se convencido disso a partir dos anos 1980.

Quanto a esse aspecto, nesta edição crítica e anotada de Poesia completa, os professores Müller e Miller tiram véus de cacoetes que se moldaram de leituras anteriores, descortinando um novo olhar sobre a poeta. Mesmo a sua discreta vida pessoal, aparentemente monótona e insípida, segue atraindo curiosos enquanto desafia os estudiosos a novas descobertas e interpretações em torno de sua obra.

Assim, quem viu e aceita o retrato vendido em filmes realizados sobre o mito Emily Dickinson – seja como uma mulher muito inteligente que vai se tornando lúgubre e velhusca, seja como rebelde, ousada, misteriosa, até o fim de seus dias – poderá vislumbrar outra personagem nas traduções do Prof. Adalberto: esta, como a que o daguerreótipo de 1846 registrou-a: jovem, de olhar sonhador, graciosa para os padrões de sua época e ao mesmo tempo moderna, atual, profunda em suas reflexões.

Para isso, basta adentrar pelo universo de seus 1800 poemas e ir curtindo os lampejos epifânicos que suas singularidades no conjunto da obra suscitam. Isto, enquanto se espera pelo Volume II (contendo Folhas e Poemas soltos, Poemas transcritos por terceiros e Poemas não retidos), acenado por Adalberto Müller para lançamento em julho de 2021. Aguardemos.

[A sepal – petal – and a thorn]

Sépala – pétala – espinho –
Manhã de verão – caminho –
Frasco de Orvalho – uma e outra Abelhas –
A Brisa brinca nas folhas –
E Eu sou uma Rosa!

[“Sown in dishonour”]

“Semeado em desonra”
Ah, é verdade!
Seria desonra isto?
Fosse bom pela metade,
A ninguém teria dito!

“Semeado em corrupção”
Ora, pois!
O Apóstolo é esquivo!
Leiam Coríntios 1.15 –
Há um – ou dois – motivos!

[Come slowly – Eden]

Vem devagar – Éden!
Lábios que não Te sabem –
Tímidos – bebem teus Jasmins –
Como a trêmula Abelha –

Chega tarde à sua flor –
Zumbe perto da janela –
Verifica os néctares –
E bebe – O Bálsamo dela –

[I asked no other thing]

Não pedi outra coisa –
Nenhuma outra – foi negada –
Ofereci o Ser – ao Poderoso
Mercador – que riu de lado –

Brasil? – girando um Botão –
Sem me dar nem um olhar –
“Dona – não teria outra coisa
Que a Gente Lhe possa -- mostrar?”

[The Spirit is the Concious Ear]

O espírito é o Ouvido Consciente –
O que a gente Ouve
Inspecionando – é audível –
Admite-se – que houve –

Para outros Serviços – como o Som –
Há uma Orelhinha – Orifício
Fora do Castelo – que guarda
Só O ouvido – de ofício –

[I felt a Funeral in my Brain]

Senti um Funeral no Cérebro,
Aqui e ali Gente de Luto
Ia e voltava – até perder
O Sentido do Absoluto –

Quando todos se sentaram,
O Ofício, como um Tambor –
Batia – e batia – até
A mente cair em torpor –

Então ouvi abrirem a Caixa
Rangendo a minha Alma
Com as mesmas Botas de Chumbo
Então o Espaço – foi soando

Como se o Céu fosse um Sino,
E o Ser, só um Ouvido,
Eu e o Silêncio, Raça estranha
No Naufrágio, e no Olvido –

E a tábua da Razão rachou,
E caí no fundo do fundo –
E mergulhei num novo Mundo,
Até saber o Enfim – então –
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(*) Poesia Completa Emily Dickinson, Volume I, Os fascículos. Tradução, notas, posfácio: Adalberto Müller. Prefácio à edição brasileira: Cristanne Miller. 2019: Editorada Universidade de Brasília. 883 págs. Tiragem: 1 mil exemplares. À venda no site e na Livraria da Editora UnB.
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(**) Resenha originalmente publicada no Correio do Livro da Editora UnB e no site Universidade de Brasília.

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