Sandra Crespo -
Tenho visto aqui e ali avaliações de que a esquerda não foi para o 2º turno no Rio tão somente por causa da sua desunião - fato demonstrado sobretudo pelas candidaturas de Martha Rocha (PDT) e Benedita da Silva (PT). Eu acho que a situação é mais complexa do que isso. Pois, se fosse assim tão preto no branco, Guilherme Boulos (PSol) não estaria no 2º turno em São Paulo - onde, no campo progressista, houve candidaturas também de PT e PCdoB.
Porém, concordo que, se tivesse havido a aliança entre PSol, PT, PCdoB e o PSB de Alessandro Molon em torno de Marcelo Freixo, acredito que agora Crivella já estaria se despedindo da prefeitura do Rio de Janeiro.
Vamos por partes. Primeiro, Martha Rocha não era uma candidata propriamente de esquerda. Tem um perfil mais de centro, e atrai um eleitorado tal e qual. De esquerda mesmo são apenas os brizolistas, que hoje infelizmente minguam a olhos vistos.
Já Benedita foi a grande surpresa desta eleição no Rio, pois, a despeito da feroz campanha de destruição do PT ao longo dos últimos anos - especialmente no Rio - mostrou uma força que pode revigorar o partido na cidade, inclusive atraindo outros quadros de esquerda para a legenda.
É importante ressaltar que o processo de desconstrução do PT a partir dos estranhos protestos de 2013, e sobretudo com o advento da Lava Jato, foi mais corrosivo no Rio de Janeiro. Afinal, Lula e Dilma eram aliados do super condenado Sérgio Cabral, que ora é responsabilizado – justa, e em alguns casos, injustamente - por quase todos os terríveis problemas que ferem de morte a cidade.
Muitos cariocas, então, perdidos neste mar de lama, sangue, suor e lágrimas que levou à cadeia governadores, secretários e parlamentares, não conseguem mais separar o joio do trigo. A situação se agrava quando lembramos que Lula também foi preso. O massacre diuturno comandado por Moro e Dallagnol - e amplificado por boa parte da imprensa - foi devastador. E hoje poucos se lembram de que os governos petistas foram pródigos em liberar recursos para grandes obras na cidade do Rio.
Todas essas variáveis, somadas ao poder das igrejas neopentecostais sobre a população mais vulnerável, só podem dar em desastre. Sem contar a influência do nefasto ocupante do Planalto, a despeito de sua crescente rejeição pelos cariocas - atualmente de 48%.
Voltemos então ao ponto de partida desta reflexão, que é a fragmentação da esquerda neste pleito. Ainda em 2019, Freixo defendeu a união desses partidos, e assim começaram as articulações. Com o PT, a conversa avançou, desenhando uma chapa com Benedita para vice. Aí veio o fogo amigo. Setores do PSol vetaram a aliança, fazendo com que Freixo desistisse da candidatura. Então o PSol lançou a deputada estadual Renata Souza, pouco conhecida para uma disputa majoritária, e o PT saiu com Benedita.
Neste final de 1º turno, o terceiro lugar na corrida ainda era incerto na véspera da eleição. Tanto os apoiadores de Martha quanto os de Benedita apostavam na ida de sua candidata ao 2º turno, atropelando Crivella. Na noite de sábado (14/11), a pesquisa Ibope mostrava uma ligeira oscilação positiva para a candidata do PT - mas isso não foi suficiente para tirar o bispo do tabuleiro.
Agora então temos a disputa entre Eduardo Paes (DEM) e Crivella (Rep - ou Rip?), na qual já sabemos que Martha anunciou "neutralidade”.
Além da acachapante rejeição de Crivella na cidade (62%), Eduardo Paes tem como trunfo o respeito de muita gente, que reconhece várias realizações de sua gestão. Somada a isso há tendência de apoio significativo do campo progressista, que não aguenta mais a pauta obscurantista do bispo, nem tampouco ver as ruas da cidade entregues às baratas, mesmo nos bairros da Zona Sul. (Quem não se lembra do “choque de ordem” vigente na era Paes, com novidades como calçadas e areias limpas, lixeiras nas esquinas? E do apoio à cultura e às artes?).
Antes que me digam “peraí, mas e a população mais pobre?”. De fato, não acho que esse segmento teve prioridade nos governos de Paes. Por isso, seria interessante que, em busca dos votos mais progressistas, o ex-prefeito possa humildemente estar aberto a propostas que façam a diferença para a maioria da população do Rio, que sofre demais com as precárias condições de saúde, habitação, segurança e transporte, entre outras.
Não escondo a minha simpatia pelas gestões de Eduardo Paes, guardados os poréns mencionados acima. E também não vejo a hora de o Rio voltar a ser o Rio. Sem pauta de costumes; sem “fala com a Márcia” para furar filas de cirurgias; sem pastores no palácio; sem milícia em porta de hospital para impedir o povo de reclamar; sem indiferença em relação ao meio ambiente.
Acho que o Rio nunca sofreu tanto. Os moradores desta cidade precisam voltar a ter esperança. E também a alegria de ver o prefeito voltando a entregar ao Rei Momo a chave da cidade no próximo Carnaval. Que virá depois da vacina.
Em tempo: Muitas pessoas estão chamando os cariocas de “burros”, mas essa ofensa bastante agressiva não foi dirigida aos paulistanos em 2016, quando Fernando Haddad perdeu para João Dória - que foi eleito no 1º turno. Será por quê?