Marcos Bagno -
Faz algum tempo já que venho me dedicando ao estudo do preconceito linguístico na sociedade brasileira. A principal conclusão que tirei dessa investigação é que, simplesmente, o preconceito linguístico não existe. O que existe, de fato, é um profundo e entranhado preconceito social.
O Brasil é dominado por uma desigualdade social profunda: num total de 206 países, ocupa o 10º lugar entre os mais injustos em termos de distribuição de renda e acesso aos bens e aos direitos sociais. Cinco homens detêm uma riqueza equivalente ao produto do trabalho de 100 milhões de pessoas. No ano passado, mais de 60 mil pessoas foram assassinadas no Brasil: esse número é incomparavelmente maior do que o total de pessoas mortas nos atentados terroristas realizados desde 2001. Vivemos uma guerra civil, mas ninguém parece se importar com isso.
Diante desse quadro monstruoso, a discriminação por meio da linguagem é somente mais um dos critérios utilizados para a manutenção da desigualdade, da injustiça e da violência. Houve um pequeno avanço na última década em termos de distribuição de renda, mas esse avanço ocorreu dentro de uma política mais ampla que não alterou em nada a estrutura social e econômica do país: os ricos se tornaram ainda mais ricos, as grandes fortunas não sofreram nenhum tipo de taxação.
Essa mesma política desprezou uma urgente regulação dos meios de comunicação, que permanecem concentrados nas mãos de meia dúzia de famílias, todas elas visceralmente comprometidas com uma ideologia reacionária, genocida e escravocrata. O resultado dessa política de conciliação e reformismo é o cenário devastador que impera hoje no Brasil: um (des)governo formado pelo que existe de mais abjeto e criminoso no espectro político, comandado por um verdadeiro chefe mafioso.
Temos um Congresso nacional dominado por corruptos e corruptores e por verdadeiros psicopatas. O judiciário, em grande parte, contribui para esse quadro ao praticar arbitrariedades de todo tipo, ao se mostrar descaradamente parcial e partidarizado, ao cometer verdadeiros crimes contra a democracia, a ponto de provocar o espanto e a condenação de instâncias internacionais.
Numa sociedade como a brasileira, portanto, não causa nenhuma surpresa a existência de um preconceito linguístico largo e fundo. Mas o preconceito linguístico tem uma particularidade. A discriminação social com base no modo de falar da pessoa é algo que passa com muita "naturalidade", e a acusação de "falar tudo errado", "atropelar a gramática" ou "não saber português" pode ser proferida por gente de todos os espectros ideológicos, desde o conservador mais empedernido até o revolucionário mais radical.
Muitas pessoas que se mostram atuantes na defesa dos direitos das mulheres, dos negros, dos homossexuais, dos índios, dos pobres etc. abraçam alegremente a ideia de que existe gente que fala certo e gente que fala errado, que a verdade sobre a língua é o que aparece nas gramáticas normativas e nos dicionários, que é preciso consertar a língua das pessoas que falam errado e por aí vai.
Por que será que é assim?
É que a linguagem, de todos os instrumentos de controle e coerção social, talvez seja o mais complexo e sutil. E tudo isso é ainda mais perverso porque a língua é parte constitutiva da identidade individual e social de cada ser humano — em boa medida, nós somos a língua que falamos.
Somos muito mais do que meros "usuários" da língua: a noção de "usuário" faz pensar em algo que está fora de nós, uma espécie de ferramenta que a gente pode retirar de uma caixa, usar e depois devolver à caixa. Nossa relação com a linguagem é muito mais profunda e complexa do que um simples "uso" — até porque essa relação se faz com a própria linguagem!
Aliás, a própria palavra “relação”, aqui, não dá conta dessa complexidade. Infelizmente, num longo processo histórico, o que passou a ser chamado de língua é uma "coisa" que é vista como exterior a nós, algo que estaria acima e fora de qualquer indivíduo, externo à própria sociedade: uma espécie de entidade mística sobrenatural, que existe numa dimensão etérea secreta, imperceptível aos nossos sentidos, e à qual só uns poucos iniciados têm acesso. Por isso, a "língua é difícil" — e não poderia ser diferente, já que é uma "ciência oculta", um saber hermético, quase esotérico.
Ora, “a língua” como uma “essência” não existe: o que existe são seres humanos que falam línguas. A língua não é uma abstração: muito pelo contrário, ela é tão concreta quanto os mesmos seres humanos de carne e osso que se servem dela e dos quais ela é parte integrante. Se tivermos isso sempre em mente, poderemos deslocar nossas reflexões de um plano abstrato — “a língua” — para um plano concreto — os falantes da língua.
Isso significa o quê, na prática? Significa olhar para a língua dentro da realidade histórica, cultural, social em que ela se encontra, isto é, em que se encontram os seres humanos que falam e escrevem. Significa considerar a língua como uma atividade social, como um trabalho empreendido conjuntamente pelos falantes toda vez que se põem a interagir verbalmente, seja por meio da fala, seja por meio da escrita.
Em contraposição a essa concepção dinâmica de língua, a concepção tradicional, operando com uma abstração-redução — a famigerada “norma culta” —, tenta nos apresentar essa norma (em sinonímia com “a língua”) como se fosse um corpo estável, homogêneo, um produto acabado, pronto para consumo, uma caixa de ferramentas já testadas e aprovadas, que devem ser usadas para se obter determinado resultado e devolvidas para a caixa no mesmo estado em que foram encontradas.
E nisso reside uma das mais notáveis contradições da concepção tradicional de “norma culta”: querer empregar essa norma (que não passa de uma abstração, impossível de ser exaustivamente descrita) como se fosse um conjunto de regras de aplicação prática, concreta. Ora, hoje já sabemos que a língua (entendida como uma atividade social) não é apenas uma ferramenta que devemos usar para obter resultados: ela é a ferramenta de trabalho e ao mesmo tempo o resultado do trabalho, ela é o processo e o produto. E não é uma ferramenta pronta: é uma ferramenta que nós criamos exatamente enquanto vamos usando.
Em todas as sociedades existe sempre um grupo de pessoas, uma classe social ou uma comunidade local específica, que acredita que o seu modo particular de falar a língua é o mais correto, o mais bonito, o mais elegante e, por isso, deve ser o modelo que as outras classes e comunidades precisam imitar. Em geral, são os moradores das regiões economicamente mais ricas, os habitantes de alto poder aquisitivo dos grandes centros urbanos, os cidadãos com acesso aos melhores meios de escolarização — enfim, aquilo que nas ciências sociais se chama de classes dominantes.
Essa situação varia muito de acordo com o grau de democratização das relações sociais de um país. Seja como for, esse elemento cultural está presente em qualquer grupo humano e em muitos lugares constitui um instrumento de conflitos e tensões sociais.
No Brasil, a situação linguística revela um drama parecido, mas com uma diferença importante. Os brasileiros urbanos letrados não só discriminam o modo de falar de seus compatriotas analfabetos, semianalfabetos, pobres e excluídos, como também discriminam o seu próprio modo de falar, as suas próprias variedades linguísticas.
Podemos dizer, portanto, que o preconceito linguístico no Brasil se exerce em duas direções: de dentro da elite para fora dela, contra os que não pertencem às camadas sociais privilegiadas; e de dentro da elite para ao redor de si mesma, contra seus próprios membros. Isso porque, como eu já disse, existe na mentalidade dos brasileiros em geral, e dos falantes urbanos escolarizados em particular, a convicção muito arraigada de que no Brasil ninguém fala bem o português.
Quando até mesmo as elites letradas demonstram tremenda baixa-estima linguística, quando exibem um grau elevado de insegurança linguística e de rejeição de seu próprio modo de falar, é porque o obscurantismo cultural que as atinge é realmente grave, quase uma doença.
São muitos os paradoxos dessa situação. As pessoas mais letradas confessam que não têm pleno conhecimento da “língua certa”, mas não veem nenhum problema em apontar os “erros” cometidos por outras pessoas, principalmente pessoas de classes sociais inferiores às delas, pessoas que não tiveram acesso à educação formal e vivem na precariedade de uma sociedade violenta e desigual como a brasileira. Isso porque, como eu já disse, o preconceito linguístico é apenas um disfarce para o exercício do preconceito social. Na visão de quem exerce a discriminação pela linguagem, todo mundo “erra”, mas existem erros mais errados do que outros.
Se uma forma não autorizada pela tradição gramatical aparece na fala ou na escrita de uma pessoa que goza de prestígio social, esse desrespeito à gramática normativa é visto como “licença poética” e quase sempre vem analisado com aquele chavão que diz “pode até estar errado, mas todo mundo já fala assim”. Quando o suposto erro vem de pessoas que estão na base da pirâmide social, pessoas sem escolaridade, pobres, de regiões geográficas consideradas atrasadas etc., não existe desculpa: é erro mesmo e pronto.
Um exemplo gritante dessa ideologia foi a recepção que teve por parte da mídia conservadora o discurso pronunciado pelo chefe mafioso que hoje preside o (des)governo brasileiro. Quando esse bandido confesso tomou posse, fez um discurso que foi logo elogiado pelos porta-vozes dos meios de comunicação que estimularam o golpe de Estado que depôs a presidenta Dilma Rousseff. Um jornalista, o mesmo que recentemente foi demitido por ter vindo a público uma afirmação do seu racismo, disse que agora estava feliz porque tínhamos um presidente que sabia falar português certo.
Tudo isso por causa de uma ridícula mesóclise. No entanto, no mesmo discurso apareciam exemplos de concordância verbal e nominal que seriam classificados de erros por qualquer gramático tradicional. Mas, como eu já disse, nada disso tem a ver com a língua em si: a língua é só um pretexto para a explicitação de uma ideologia linguística reacionária.