"A vida é de quem se atreve a viver".


Marcos Bagno
O que fazer com o dito cujo?

Marcos Bagno -

Não: o “dito cujo” do título não é o rato de esgoto, disenterino em exorcismo, que se catapultou à presidência da República por meio de um golpe de Estado. Mas, para não perder a oportunidade, aqui vai: Fora, Temer!

O “cujo” do título é o pronome relativo mesmo, aquele que, segundo as lições tradicionais, “indica posse”: “Ai está um governo provisório, cujo chefe, Michel Temer, se cercou do que existe de mais abjeto, imundo, corrupto e fascista na sociedade brasileira”.

Pois bem: se tem alguma coisa que podemos afirmar com absoluta certeza, sem medo de cometer nenhum exagero é que o pronome “cujo” está morto e enterrado há muito e muito tempo.

Ele não existe na língua, e quando uma linguista diz que determinada coisa “não existe na língua”, quer dizer que essa “coisa” não pertence à intuição das falantes da língua: elas não a aprendem com os pais, a família, a comunidade; ela não faz parte da gramática da língua materna.

O pronome “cujo” só pode ser adquirido por meio do letramento escolar: é preciso ir para a escola e frequentá-la por muitos anos para tomar conhecimento dessa forma gramatical.

Mas tomar conhecimento não significa necessariamente usar. Em centenas de horas gravadas de fala de brasileiras classificadas de cultas, um material que usei para produzir minha Gramática pedagógica do português brasileiro, só encontrei uma única ocorrência de “cujo” e, ainda assim, num uso considerado “errado” pela tradição gramatical: “ela sai presa a esse tecido conjuntivo, cujo tecido se prende à borda anterior da clavícula”.

É um uso muito comum, em que a gente enfatiza o termo anterior, como se quisesse dizer “tecido esse que...”.

Mesmo na língua escrita mais monitorada, em gêneros textuais que exigem maior formalidade, aparecem inúmeros exemplos do abandono do “cujo”. Em 2009, por exemplo, Clóvis Rossi escrevia, na Folha de S. Paulo: “Outro dia, alguém que acabei esquecendo o nome...”, onde se esperaria: “alguém cujo nome acabei esquecendo...”.

Mas antes que as pessoas apressadinhas em exibir seu complexo de vira-lata comecem a pensar e a dizer que nós, no Brasil, estamos “arruinando a língua portuguesa”, é preciso saber que o mesmo fenômeno se passa em Portugal. Aliás, o “cujo” já desapareceu também do espanhol falado, do francês falado, do italiano falado. Parece que todas essas pessoas (que somadas chegam a mais de meio bilhão!) combinaram para arruinar ao mesmo tempo suas línguas nos mesmos aspectos gramaticais!

Não é nada disso, é claro. O “cujo” (aliás, todos os pronomes relativos, mas não vou falar deles agora) representa a sobrevivência de uma construção de síntese em línguas que se caracterizam por uma morfossintaxe marcadamente analítica.

As línguas românicas, derivadas do latim, são línguas analíticas. O que em latim clássico se dizia com poucas palavras, em construções sintéticas, nessas línguas é preciso dizer com mais palavras: “Homo lupus hominis”, três palavras, contra “o homem é o lobo do homem”, sete palavras.

Conforme se ensina (mas será que se aprende?) na escola, podemos reunir duas frases numa só com o uso de “cujo”: “Temos um presidente golpista. O nome dele é Michel Temer” pode se transformar, sinteticamente, em: “Temos um presidente golpista, cujo nome é Michel Temer”.

Só que ninguém fala assim. Ou, melhor, alguém pode até falar assim, mas sem dúvida estará querendo “aparecer”, “se mostrar” ou, quem sabe, falando num contexto formal em que se espera o uso de uma linguagem mais “caprichada”.

No lugar do “cujo” sintético, nós (e as pessoas que falam espanhol, francês e italiano) desenvolvemos duas estratégias. A primeira manda o “cujo” para a cova e indica a posse de outra maneira: “Temos um presidente golpista que o nome dele é Michel Temer”.

Ou, de forma ainda mais simples: “Temos um presidente golpista que o nome é Michel Temer”.

Agora vem a questão importante: se o “cujo” está morto na língua falada, isso significa que não é preciso mais ensiná-lo na escola? A resposta é: não, não e não! Se a função da escola é ensinar o que as pessoas não sabem, e se no caso do “cujo” só é possível conhecer esse pronome por meio do letramento escolar, então cabe à educação linguística sim, sim e sim, ensinar os usos do pronome “cujo”. Ele pode ser de grande utilidade na produção de textos escritos mais formais, ajuda a conferir maior precisão, mais coesão e coerência ao texto escrito.

Ninguém precisa ensinar ninguém no Brasil a dizer “um golpista que o nome dele é Michel Temer” nem “um golpista que o nome é Michel Temer”: essas construções são as que de fato existem na gramática da nossa língua materna. O que temos de aprender na escola é justamente o que não faz parte dessa gramática intuitiva, mas que ainda tem espaço em determinados usos da língua, sobretudo na escrita.

Só não cabe à escola dizer que as outras construções são “erradas”, “feias” ou “viciosas” e que só o “cujo” é “correto”. Essa atitude, mais velha que a sé de Braga (aliás, mais velha que o Partenon de Atenas!), é puro preconceito, desprovido de qualquer fundamentação teórica mínima. Ou seja: burrice!

E, para terminar: Fora, Temer!

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