Alexandre Ribondi –
Os momentos mais explícitos e contundentes do documentário Indianara são os silêncios. Sem narrador e sem grandes explicações verbais, econômico nas falas das pessoas retratadas, com direção da francesa radicada no Brasil Aude Chevalier-Beaumel e de Marcelo Barbosa, o filme mostra com detalhes às vezes cirúrgicos, às vezes poéticos e comoventes, a luta diária de Indianara Siqueira na Casa Nem, um abrigo carioca para pessoas transexuais e travestis.
“A vitória será minha quando os miseráveis e os diferentes se unirem”. Indianara lê a frase numa carta que havia escrito anos antes e que estava perdida em um saco de papéis e fotos antigas, que ela põe no fogo num ritual de louvor ao presente e esquecimento do passado. “Isso eu devo ter escrito num dos momentos que tentei suicídio”, ela explica logo em seguida, com um sorriso no rosto, sem se abalar.
Ela se apresenta como puta, travesti, vegana e militante, e também como a última mãe dos desvalidos que trabalham nas ruas do Rio de Janeiro e que, de noite, não têm onde dormir. Na Casa Nem, todos se unem, participam de jogos, de pequenas apresentações cênicas. Alguns aprendem a ler.
Documentários como Indianara parecem ter aprendido a fazer cinema com a grande experiência do cinema mudo. Dispensam as palavras e narram os acontecimentos e a vida com a força e a luz das imagens. A sequência final, em que ela e outra mulher entram em um prédio abandonado e sujo, depois de terem sido expulsas da casa na Lapa, não tem narração ou fala que explique o que está acontecendo. Mas o olhar das duas mulheres que observam o imenso espaço vazio tem uma beleza capaz de ensinar o telespectador através da pele e do ar que se respira.
O mesmo acontece com os minutos do documentário dedicados ao assassinato da vereadora Marielle Franco, em 2018, num crime que até hoje está sem solução. Para descrever o momento, lágrimas. O mesmo acontece quando, na televisão, é anunciada a vitória nas urnas do candidato Jair Bolsonaro. Depois do silêncio e na indignação estampados nas caras, a tela do aparelho televisor, colocado numa sala suja, com paredes grafitadas, é coberta por uma mulher magra que, em pé, rodopia e declama um monólogo, provavelmente improvisado, sobre a vida dos travestis e transexuais assassinados ao longo de 2018.
O filme também mostra o casamento de Indianara com o seu marido, um homem cis, portador de HIV. É ele, aliás, quem lê na parede externa da Casa Nem a frase: “Nem Deus, nem Estado, Nem Marido, Nem Patrão”. E conclui: “com certeza, foi a Indianara quem escreveu isso. Mas eu sou o marido!”.
Indianara mostra a vida e a militância à esquerda da esquerda. Ela se apresentou, em determinado momento, como candidata a vereadora, com forte possibilidade de sair vencedora, mas foi afastada da corrida eleitoral pelo seu partido, o PSol, que ela acusa de “escroto e hipócrita” em praça pública, de microfone na mão. E é disso que o filme se trata.
Desde os anos 1970, quando foram dados os primeiros passos da luta homossexual, surgiu o gay burguês assumido, da classe média branca, que cultiva o preconceito e a segregação. Passou a considerar os travestis e as bichas loucas como a pedra em seu sapato, que ele usa para ser aceito pela sociedade. Indianara e suas meninas, que ocupam casas abandonadas e levam suas roupas em sacos de lixo, gritam para incomodar. Porque ou a revolução será feita pelas mulheres, pelos pretos e pelos homossexuais ou será apenas uma farsa bem comportada.
O filme já foi apresentado no festival de Cannes e em mostras no Brasil e pelo mundo afora. Pode ser visto nas plataformas digitais Now, Google Play, iTunes, Looke, Vivo Play e Amazon. A partir de 5/7, estará disponível na plataforma Mubi em 195 países.
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Ficha técnica:
Título do documentário: Indianara
Duração: 1h24
Direção: Aude Chevalier-Beaumel e Marcelo Barbosa
Roteiro: Marcelo Barbosa, Aude Chevalier-Beaumel e Michele Frantz
Trilha sonora: Malka Julieta, Nicolau Domingues e Lucas Porto
Diretores de fotografia: Aude Chevalier-Beaumel e Marcelo Barbosa
Montador: Quentin Delaroche