Em meio ao debate que se estabeleceu no Distrito Federal em torno do projeto de cobrança pelo estacionamento público rotativo, o urbanista Claudio Silva, filiado à Associação Andar a Pé, escreveu as seguintes perguntas e respostas.
Esta é mais uma contribuição, dentre as inúmeras que estão circulando na internet, que pode ajudar a refletir sobre o papel da cidadania, do poder público e do meio ambiente.
Onde posso estacionar meu carro na cidade?
Existem dois tipos de estacionamento: em espaço privado e em espaço público. O primeiro é ofertado pelos proprietários de parcelas do solo e edifícios e você pode estacionar nele desde que seja convidado ou aceite as regras de acesso. O segundo é aquele ofertado pelo poder público e você pode estacionar nele desde que encontre vaga e, eventualmente, aceite as regras de acesso.
Quais seriam as regras de acesso?
Os estacionamentos em espaços privados são condicionados tanto por regulamentações do poder público quanto por regras estabelecidas pelos proprietários. Elas podem variar desde a fixação de número mínimo e máximo de vagas por edifício, em função de sua classificação de uso até o pagamento pela prestação dos serviços de guarda e vigilância.
Os estacionamentos em espaços públicos são condicionados pelas regras estabelecidas no Código de Transito Brasileiro, Lei nº 9503/1997, e nos regulamentos municipais, como a lei do sistema viário, por exemplo. Os tipos mais comuns acontecem na via pública, desde que em espaços organizados e sinalizados para tal. Entenda-se via pública como o espaço existente entre as linhas de fachadas entre um lado e outro do que se chama também de rua. Ela compreende, na maioria das vezes, espaços que não se pode estacionar, como as calçadas e as pistas de rolamento.
Eu, como cidadão, tenho direito de estacionar meu carro nos espaços privados e públicos?
No caso dos espaços privados o seu direito é condicionado pela regulamentação por parte do poder público e pelas regras de mercado. Portanto, é limitado. No caso dos espaços públicos o seu direito é condicionado ao interesse da coletividade. Portanto, também é limitado. Não existe objetivação do que poderia vir a ser mal entendido como “direito ao estacionamento”.
Eu posso estacionar meu carro em espaços privados e públicos desobedecendo a regras de acesso?
Não. Em ambos os casos você incorreria em situação de polícia. Nos espaços privados você estaria invadindo propriedade alheia e nos espaços públicos você estaria provocando disfunção na operação do trânsito e invasão de propriedade coletiva.
E se eu não encontrar vaga para meu carro em espaços públicos?
Você pode procurar vaga em estacionamentos privados mais próximos ao seu destino ou voltar para sua origem, onde provavelmente haverá uma vaga em espaço privado, e experimentar o transporte público coletivo ou o transporte ativo, como as bicicletas, ou a pé, por exemplo.
O poder público não é obrigado a ofertar vagas para meu carro em espaço público?
Não. Em relação a obrigações na mobilidade urbana, o poder público tem deveres de caráter essencial, conforme a Constituição da República Federativa do Brasil, no que diz respeito à dotação de transporte público coletivo e condições de acessibilidade para pessoas com deficiência e restrição de mobilidade.
Imagine que cada proprietário de carro na cidade tivesse garantida uma vaga em espaço público? Não haveria espaço para todos.
Meu dia é muito corrido e as funcionalidades de uso do meu carro são as melhores que eu poderia encontrar. Como iria abrir mão delas?
Com muitas pessoas usando seus carros na cidade, o que ainda é uma realidade, as funcionalidades do uso do carro estão caindo por terra. Cada vez mais se perde tempo nas viagens, cada vez mais se perde a oportunidade de desfrutar de espaços públicos e da convivência com o próximo e cada vez mais se fica suscetível ao uso de recursos não renováveis.
A não ser que não se importe com o tempo perdido no trânsito, com a cidade, com as outras pessoas e com o meio ambiente. Busque planejar suas viagens de maneira a compartilhar o uso do carro com outras pessoas e a inserir uso dos outros meios de transporte em determinados trechos.
Na minha cidade o transporte público coletivo não funciona, o que devo fazer então?
Procure entender o porquê do mau funcionamento e exerça sua cidadania fazendo a cobrança por melhorias no lugar certo, da maneira certa e com as pessoas certas. Torne pública a sua causa e participe apresentando soluções.
Eu moro longe do meu destino mais frequente e a funcionalidade do transporte ativo não me atenderia, o que devo fazer então?
Para longas distâncias o transporte público coletivo é a solução mais adequada para a maioria das pessoas. Procure informar-se da disponibilidade do serviço, frequência e possibilidade de realizar seus deslocamentos utilizando a combinação do transporte ativo com o transporte público coletivo.
Experimente, quando possível, inserir o fator “localização” como critério para escolher o imóvel onde vai morar. Essa localização tanto pode favorecer a proximidade com o seu destino mais frequente quando pode favorecer a proximidade com ponto de acesso ao transporte público coletivo.
Eu moro perto do meu destino mais frequente e a funcionalidade do transporte ativo não me atrai, o que devo fazer então?
Você provavelmente está habituado a usar o carro, como a maioria das pessoas que o fazem. Tente levar em consideração os benefícios, que não são poucos, que o uso frequente do transporte ativo trás para a sua saúde, para seu bolso e para a qualidade do espaço público da cidade que você usa. E seja determinado porque toda mudança requer certa dose de esforço pessoal.
Diante de todas as outras opções de transporte, o uso do meu carro é muito cômodo, pois sempre encontro vaga de graça em espaços públicos, sejam eles regulares ou não. Por que mudaria meu hábito?
O deslocamento em carros apresenta desvantagens para a saúde do indivíduo se comparado ao transporte ativo. É importante refletir sobre os ganhos em redução do colesterol, diminuição de risco de enfarte, benefícios às articulações e postura corporal etc. considerando a incorporação gradativa de exercícios com o hábito de andar a pé e de bicicleta. Some-se a isso a possibilidade de economia com estacionamento, combustível e manutenção do carro.
Na linha da história das sociedades, até meados do século passado, quem queria e podia usar carros saiu ganhando, recebeu incentivos de todas as ordens. Por essa razão ainda existe inércia de alguns poderes públicos constituídos para diminuir a dotação de vagas em espaços regulares e para coibir o uso de espaços irregulares como vagas. Mais recentemente diversas sociedades têm corrido na direção contrária, subordinando o uso dos carros e a dotação de estacionamentos ao uso dos demais meios de transporte e ao desfrute do espaço público como lugar de encontro.
Você mudaria seu hábito porque faz parte dessa história e porque, muito em breve, estará subordinado a um poder público alinhado ao que há de mais moderno em termos de mobilidade urbana.
Não me conformo com a possibilidade de o poder público local buscar reduzir a quantidade de estacionamentos em espaços públicos, subordinando o uso dos carros a outras possibilidades de uso da cidade, o que devo pensar?
Lembre-se de que nem toda a população possui a propriedade de um carro para usá-lo como opção de transporte cotidiano. Por isso o poder público não pode privilegiar os espaços públicos para somente a parcela da população que utiliza o carro como modo de transporte. É necessário que o poder público racionalize a utilização dos espaços públicos de maneira a organizar o trânsito, regulamentando melhor os espaços considerando seus diferentes usos (cargas e pessoas), buscando um equilíbrio entre os diferentes meios de transporte e aplicando os recursos para benefício de toda a população.
Pense em que cidade você quer para você e não se esqueça de considerar o interesse coletivo. Considere que ao usar uma vaga de estacionamento durante um dia inteiro está desperdiçando os recursos financeiros que investe no seu carro. Considere que ao usar uma vaga de estacionamento está ocupando o espaço que poderia ser usado por dez pessoas em bicicletas.
Considere que se seu carro é bonito para você, não significa que contribui para a qualidade da paisagem urbana. O que está em questão é a incompatibilidade cada vez mais reconhecida entre o carro, que é um bem privado, e a cidade que é um bem público. Para todos os fins, seu interesse particular não deve se sobrepor ao interesse dos outros.