"A vida é de quem se atreve a viver".


José Carlos Peliano: “Bastou que houvesse, há 13 anos, a eleição de um torneiro-mecânico, que conseguiu reverter momentaneamente o complexo de vira-lata, retirar da pobreza cerca de 30 milhões de pessoas, para que viesse um golpe parlamentar-jurídico-midiático destituir a presidenta eleita e desfazer tudo o que havia sido feito”.
Complexo de vira-lata e a eleição deste ano

José Carlos Peliano (*) -

A sociedade brasileira está enferma e enclausurada num complexo permanente contraído por uma trama psicopatológica e social invisível, mas visível no dia a dia dos comportamentos e reações dos indivíduos. Começou a ser tecida desde o descobrimento do país, há mais de 500 anos, com a chegada dos conquistadores portugueses que por aqui ficaram sob o beneplácito e apoio da coroa portuguesa.

A conquista engendrou a distribuição das terras virgens para capitães hereditários, chegados à Corte, os quais se utilizaram de nossos indígenas, dos degredados da ralé portuguesa e mais tarde dos escravos africanos para trabalharem a terra e executarem os serviços necessários à construção e povoamento do território.

O complexo é tecido e desdobrado na presença desses personagens: os que mandam e os que são mandados. Os primeiros abençoados pela coroa real portuguesa e os segundos amaldiçoados pelo tacão dos mandantes e seus prepostos. Forma-se, assim, as raízes da sociedade brasileira. Poucos beneficiados e milhares submetidos ao trabalho degradante, desumano e aprisionado.

O sociólogo Jessé de Souza com sua vasta pesquisa e bibliografia daria a esse quadro desalentador o conceito de sociologia de vira-lata de um lado, apoiado na categoria de meritocracia de outro, embora um não se sustente sem o outro. (Complexo, para mim, soa mais arraigado, admitido como natural e não herdado). Os que mandavam tinham o mérito dado pela Coroa de ter condições pessoais e materiais de receberem as capitanias, enquanto os demais eram desqualificados, destituídos de quaisquer bens além de suas forças de trabalho e totalmente entregues à sorte.

O complexo do mando e do mandado instalou-se de vez na incipiente sociedade de então e veio de alastrando na constituição do chamado país Brasil em todas as regiões, aglomerados rurais e urbanos e relações de trabalho. Os que nasciam despossuídos sabiam desde sempre que continuariam despossuídos e os que vieram em berços de ouro tinham certeza que a opulência seria o futuro esperado.

Mescla-se, então, as relações capital/trabalho com as relações de meritocracia. Essas reforçam aquelas pela educação, o conhecimento técnico e profissional e o status social. De um lado, os mandantes, aqueles escolhidos pela hereditariedade e riqueza, de outro os mandados, os vira-latas, aqueles que se viram e têm que se virar para sobreviver a qualquer custo e circunstância.

O complexo se alastra e se manifesta de outras maneiras. Os mandantes e apaniguados igualmente são afetados por ele, quando, ao se compararem aos seus semelhantes estrangeiros, os admiram, os louvam e os procuram copiar em seus comportamentos, atitudes e atos. Tornam-se, em geral, vira-latas, mas de pedigree, por se acharem menos importantes, qualificados e preparados que aqueles. Mesmo quando a eles se associam em negócios ou projetos, os nacionais se apresentam sempre com reverências, subserviências e dependências.

É algo como a síndrome de Estocolmo quando o sequestrado depois de um certo tempo de cativeiro passa a se aproximar do sequestrador, compreendê-lo, apoiá-lo e até mesmo admirá-lo. Tipo assim, pensaria o sequestrado, “minha situação poderia ser até pior, mas estou sendo ainda assim bem tratado, considerado, atendido e útil ao objetivo do movimento. Até pareço ser mais um do grupo, mesmo que ocupando esse lugar depreciado que me coube”.

É claro que o sequestrado foi forçado a tal, mas acaba por compreender as razões e os objetivos do sequestro, aceitar o que se passa e concordar com a oportunidade e a propriedade da ação do grupo. Submete-se à lógica do sequestrador e se adapta à situação por pior que seja. Uma atitude de sobrevivência, mas também de acomodação e reconhecimento de seu lugar na trama estabelecida.

Pois então, o complexo de vira-lata afeta milhões de brasileiros despossuídos ou quase e se estende aos poucos que mandam e desmandam seja pela lógica da meritocracia, seja pela tradição de um culturalismo herdado de antanho no qual manda quem pode e obedece quem tem juízo. A sociedade brasileira está enferma com esse complexo há cinco séculos, o que a impede de se julgar vivendo numa democracia plena.

Se a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo, como é isso no Brasil se os despossuídos ou quase permanecem assim desde o descobrimento, de geração a geração? Não existe igualdade de direitos e oportunidades, pois que a meritocracia impede que a democracia exista em sua plenitude. Estão aí para se contar em nossa história os mandos, desmandos e violências de toda ordem, principalmente nas esferas política, jurídica e econômica.

Bastou que houvesse há exatos 13 anos a eleição de um governo democrático e popular, eleito um antigo operário, torneiro-mecânico, semiqualificado, que conseguiu ainda assim reverter momentaneamente o complexo de vira-lata, retirar da pobreza cerca de 30 milhões de pessoas, reduzir drasticamente a desigualdade de renda e melhorar a saúde e a educação de milhões de despossuídos, entre outras conquistas, para que viesse um golpe parlamentar-jurídico-midiático para destituir a presidenta eleita e desfazer tudo o que havia sido feito.

De um lado venceu a meritocracia e de outro perderam os sem vez e voz. Cada macaco no seu galho diriam os mandantes, onde agora é o nosso lugar? diriam os despossuídos. Como o complexo pegou fundo nesses últimos, eles não reagem e brigam por seus direitos, se acomodam, mesmo irados, se adaptam à nova situação, mesmo que traídos, derrotados e ameaçados pelo sistema.

Exemplo atual escandaloso é a atitude e a postura do candidato do PSL à presidência. Reconhecidamente misógino, racista, antifeminista, armamentista e violento, conforme diversas manifestações públicas captadas em vídeos, declarações e intervenções parlamentares, ele ainda assim consegue amealhar uma percentagem alta de intenções de voto. Como entender essa situação? Afora os que o apoiam por serem semelhantes em intenção, gesto e atitude, há uma boa parte que é contra, mas vota a favor e outra que vota nele, mas não tem discernimento político.

Por que?

A explicação vem do complexo de vira-lata. Dirão os afetados pelo complexo: pouco me importa, eu não concordo, mas vou votar assim mesmo porque ele é tudo o que gostaria de ser para enfrentar a situação do país: peitudo, brigão, sem papas na língua, macho, vingador. Igualam-se na ira acumulada por serem vira-latas, assim se dão ao direito de eleger o seu representante por não suportar o outro partido, mesmo não tendo nada contra o candidato deste, ou para fazer o que gostariam na arrumação/desarrumação da situação vigente.

Os eleitores do candidato do PSL, homens, são os que se veem como Rambos tupiniquins, ou os que veem nele um caminho, mesmo imprevisível, para se manterem ou ampliarem seus espaços patrimonialistas de poder, enquanto as mulheres são as mal-amadas, ou as que costumam apanhar (física ou psicologicamente) dos seus companheiros, como já disse Nélson Rodrigues, ou as que não entendem bem nada de política nem querem, ou ainda as que estão conformadas com a vida sofrida e mal tradada que têm. O país assim complexado corre o risco de ter em seu comando uma figura desse naipe na jogada iniciada por Trump nos Estados Unidos ou pior.

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(*) José Carlos Peliano, poeta, escritor e economista.

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