Roberto Amaral (*) -
“Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista.” Dom Hélder Câmara
A humanidade avançou em todos os campos do conhecimento; dominou a Terra e seus recursos e partiu para a conquista espacial: estabeleceu os mais fantásticos progressos no domínio do conhecimento científico, e foi capaz de avanços tecnológicos antes insuspeitados.
O desenvolvimento da medicina, da genética, da informática, da nanotecnologia, da robótica, criou condições para o aumento da expectativa e da qualidade de vida da espécie. O milagre da tecnologia – reduzindo o mundo a uma casca de noz – faz de todo ser humano, potencialmente, um vizinho de seu semelhante mais distante.
O progresso científico-tecnológico e o crescimento econômico, sob a égide da ética capitalista, todavia, não foram suficientes para tornar o homem mais feliz, nem construíram a paz, pois não foram postos a serviço de toda a humanidade. Ao contrário, fizeram-se instrumento da concentração de renda, da desigualdade social, do império do capital que submete povos, nações e Estados. Fizeram-se igualmente instrumentos da guerra que volta a ameaçar a sobrevivência da vida no planeta. A humanidade de hoje, no ápice do desenvolvimento científico-tecnológico, é marcada pela fome, pela miséria, pela exclusão de milhões de seres humanos, definitivamente condenados ao atraso e ao subdesenvolvimento.
Pela primeira vez na História, há produção de alimentos suficiente para atender às necessidades de toda a população do mundo. No entanto, mais da metade do planeta passa fome. Temos recursos econômicos, materiais e tecnológicos que assegurariam a todos, não fosse a concentração econômica e o imperialismo, moradia, trabalho, escola, saúde e lazer. Não há explicação científica para a pobreza e a fome.
No último dia nove de agosto, o jornal O Globo ilustrou metade de sua primeira página com uma matéria que dispensava legenda, embora cobrasse indignação que ainda não se fez sentir: a fotografia de um grupo de pessoas, homens e mulheres, crianças e velhos, catando alimentos de um caminhão de lixo. Onde? No Haiti? Em Bangladesh? Foto antiga de flagelados nordestinos fugindo da seca de 1958? De onde nos chegava aquela cena de miséria humana, mais forte que as tintas de Portinari? A foto de Onofre Vieira tirada na rua do Rezende, no centro da cidade do Rio de Janeiro, um ou dois dias antes.
E, no entanto, o Brasil é o terceiro produtor mundial de alimentos.
Mas neste país, uma das maiores extensões de terra e reserva de água do planeta, de agricultura capitalista moderna, país do poderoso complexo agroindustrial, cerca de 20 milhões de pessoas residentes nas regiões metropolitanas vivem em situação de pobreza, quadro que ainda se agrava sob a paranoia bolsonarista: de 2020 a 2021 esse contingente de deserdados da civilização aumentou em cerca de quatro milhões de brasileiros. Cinco milhões estão abaixo da linha de pobreza extrema.
Um líder ruralista explica que o papel do agronegócio é produzir alimentos (preferentemente para exportar, acrescento) e não para matar a fome da população, problema que não lhe diz respeito. A classe dominante brasileira, fiel às suas origens (o latifúndio e o escravismo), não tem compromissos nem com o país, nem com sua gente. Rejeita cogitações éticas.
Quando nos autoproclamamos uma das dez maiores potências industriais do mundo capitalista (já ocupamos a sexta posição nesse ranking), a população de pobres passa de 65,4 milhões em 2020 para 71,9 milhões no começo de 2021. Em 2014, os 40% mais pobres das regiões metropolitanas registravam R$ 515 de renda média. Em 2019, esse valor havia recuado para R$ 470. No ano passado, desceu a míseros R$ 396 (O Globo, 9/8/2022).
Relatório da ONU (Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo 2022-FAO) informa que o número de pessoas afetadas pela fome em todo o mundo subiu para 828 milhões em 2021 – uma alta de cerca de 46 milhões em um ano – e, hoje, afeta 10% de toda a população do planeta. A esses números agregam-se outras cerca de 2,3 bilhões de pessoas, ou 30% da população global, em situação de insegurança alimentar.
Este, o legado da vitória insofismável do capitalismo.
Cerca de 130 milhões de brasileiros passam por alguma forma de insegurança alimentar, algo como 59% da população. É um acréscimo de 60% em comparação a 2018. A fome avança em 2020 e já atinge 33 milhões de pessoas (Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar-Rede Penssan).
A insegurança alimentar grave (fome), em domicílios com crianças menores de 10 anos, subiu de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022.
Em 1955 o governo federal instituiu a Campanha da Merenda Escolar para atenuar a pobreza nutricional das crianças amparadas pela escola pública. Em regra subalimentadas e carentes de assistência médica. Esse programa, mantido até aqui com melhorias significativas introduzidas pelos diversos governos, é considerado a mais importante política pública do país. Lauro Oliveira Lima, o educador, considerava-a “a mais importante reforma pedagógica” da história brasileira desde Pombal. A essas crianças, que têm na chamada “merenda escolar” uma das mais importantes refeições do dia, na maioria dos casos a única refeição do dia, Bolsonaro acaba de negar o direito à alimentação, ao vetar reajuste de 34% ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), aprovado pelo Congresso Nacional.
Se o povo vai mal, se o país regride economicamente, se a crise social se agrava, o capitalismo vai bem. Em 2021 o lucro dos bancos somou R$ 81,63 bilhões. É o maior desde 2006.
A balança comercial do agronegócio brasileiro apresenta superávit de US$ 105,1 bilhões em 2021. É o resultado do recorde histórico nas exportações, que atingiram US$ 120 bilhões em 2021, o que corresponde a uma alta de cerca de 20% na comparação com 2021. No mesmo período o PIB do agro cresceu 8,36% (IPEA).
Percorri os jornalões à cata das repercussões da matéria de O Globo. Animava-me conhecer o aprofundamento do tema, discutindo as causas dessa mazela que nos persegue desde a Colônia. Que nos teriam a informar os analistas de plantão, os especialistas, os acadêmicos? Nenhum comentário. Nenhuma análise. Silenciam editores e nada nos têm a dizer os articulistas. O tema volta à tona nas páginas do jornal dos Marinhos, na forma de entrevista com um dos catadores de comida estragada. Nada que perfure a casca de ovo.
Ninguém parece se perguntar por que há tanta gente passando fome.
Essa realidade, não obstante sua contundência, o fracasso do modelo capitalista, também passa ao largo da campanha eleitoral; uma vez mais a esquerda socialista se omite de seu dever – político, ideológico e inarredavelmente ético – de denunciar o capitalismo como responsável pela tragédia social que nos assola. Abdica de seu dever de contribuir para o nível de politização das massas; enreda-se em metas eleitorais e a elas se limita, uma vez mais confundindo meio com objetivo, tática com estratégia; renuncia ao debate ideológico, omite-se quando seu dever é o confronto político, e assim deixa o caminho livre para o avanço do neoliberalismo autoritário e da extrema-direita.
Ocorre que o socialismo, como nenhum progresso histórico, escala a lista das possibilidades revolucionárias como fruto do acaso ou de doação divina. A inexistência, presentemente, da opção socialista é o resultado do atraso do processo social brasileiro. E simplesmente registrá-lo, ou a ele ceder, ou seja, não intervir e deixar-se governar por ele, é uma postura contrarrevolucionária, porque quando contemplamos a realidade como fato em si, como dado acabado, optamos por conservar o statu quo. A realidade, consabidamente, é um produto histórico construído pela ação humana. O marxista das Teses sobre Feuerbach é aquele que conhece a realidade para poder modificá-la.
A visão conservadora do processo histórico consagra a história das classes dominantes brasileiras, que, das feitorias do século XVI à República, dos escravocratas e traficantes da Colônia aos locatários da Faria Lima e da avenida Paulista, sempre se opuseram a qualquer sorte de mudança ou reforma, permitidas tão-só aquelas que não alteravam a natureza do mando. A ruptura do statu quo é rejeitada e em seu lugar se sobrepõe a conciliação, instrumento de conservação do poder da casa-grande.
O socialismo é, antes de tudo, um humanismo. Trata-se de um projeto de nova sociedade, de um novo padrão de dignidade humana. A divergência insanável com o capitalismo é a exploração do homem pelo homem, que lhe é intrínseca, é a extração da mais-valia; trata-se de um conflito ético, portanto intransponível, e que não pode ser ignorado em momento algum da política. O enfrentamento ao neofascismo é indissociável do combate ao capitalismo, que deve ser permanente, como o proselitismo socialista.
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(*) Com a colaboração de Pedro Amaral.