"A vida é de quem se atreve a viver".


O sectarismo e o ódio ideológico no Brasil de hoje são inspirados no nazismo. Ovos da serpente trazem o retorno de um militarismo que ainda sobrevive
O país que perdeu o futuro

Luiz Philippe Torelly (*) -

Todos recordamos de livros que foram marcantes em nossas vidas. Ainda adolescente li Brasil País do Futuro, do famoso escritor Stefan Zweig, austríaco, que se exilou no país fugindo da selvageria nazista.  É um livro otimista e fervoroso, onde ele exalta as qualidades do país e de suas gentes e aponta um futuro promissor. Tragicamente, Stefan e sua esposa se suicidam, motivados pelo receio de uma possível vitória nazista que então se desenhava.

Do livro à realidade, vamos para o dia 1º de abril de 1964. Eu tinha nove anos e estava cortando os cabelos na Barbearia do Nicola, na comercial da SQS 208, onde morávamos. De repente, meu pai entra sobressaltado e nos pega pela mão. Vamos embora mesmo com o corte inacabado.

Havia começado o Golpe Militar de 1964. Próximo a nossa quadra, na SQS 408, havia uma Central Telefônica do DTUI – Departamento de Telefones Urbanos e Interurbanos. A Central logo foi ocupada por blindados e ninhos de metralhadora, por seu caráter estratégico.

Papai em seu rádio transglobe, ficava ouvindo as notícias e as listas de cassações. Minha mãe mais politizada, estava apreensiva e revoltada com os absurdos dos militares e o exílio de Jango, Brizola e Arraes entre outros tantos.

O início da década de 60 foi um tempo de otimismo. Brasília, Bossa Nova, Bicampeão mundial de futebol, Eder Jofre, Maria Ester Bueno, Miss Universo Maria Yeda Vargas, reformas agrária e urbana, 13º salário. Os jornais estampavam fotos das colunas de tanques e dos soldados e teciam loas, como novamente fizeram no impeachment criminoso de Dilma Rousseff. O mesmo povo que saiu às ruas pedindo Deus, Pátria e Família, foi o que recentemente pediu a volta dos militares e do AI-5.

Em 1968, os ventos da mudança e da liberdade sopraram mundo afora. Aqui a ditadura estava instalada, mas ainda não havia exibido todas as suas garras. Vou ao banheiro da escola, onde aliás se ensinavam lições grotescas de Moral e Cívica, em um livro de autoria do líder integralista Plínio Salgado, uma caricatura de Mussolini tupiniquim. Havia um pequeno cartaz colado na parede com os seguintes dizeres: Rockfeller vem aí. Pau nele!

A revolta que tomava as ruas de Paris, a ponto de pôr em risco o governo De Gaulle, chegava ao Planalto Central. Passeatas na W3, movimentos secundaristas e universitários presentes. Ao chegar recebo um cartaz: “Seguiremos o exemplo do povo Vietcong!”. Polícia, jatos de água, prisões, quebra-quebra na Thomas Jefferson.

Pouco tempo depois veio o malfadado AI-5. A Ditadura recrudesceu, tortura, morte, desaparecimentos, cassações, exílios, censura, fechamento do Congresso Nacional, cassação de Ministros do STF. Uma longa noite de trevas pousou sobre o país.

Sete anos se passaram até que a morte do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho sob tortura nas dependências do DOPS paulista, levasse a sociedade a exibir sua repulsa e exigir democracia.

Esse novo momento já me pegou na Universidade de Brasília, onde o mundo se abriu para mim. Uma realidade inovadora que me fascinou. Uma atmosfera de liberdade, livre pensar, novas ideias em plena ditadura. O movimento estudantil se recuperava e se reorganizava.

Em 1977, as greves estudantis retornaram mostrando a indignação não só dos estudantes, mas de toda a sociedade. Nosso arqui-inimigo, Capitão de Mar e Guerra José Carlos Azevedo determinou a invasão da universidade e a prisão de dezenas de colegas. O regime odioso fazia questão de mantê-lo, para exibir seu poderio. Deve estar ardendo no sétimo círculo do Inferno de Dante Alighieri.

A anistia de 1979 traz um alento de pacificação de para o país. “Muda-se alguma coisa para nada mudar”, a famosa frase de Tomasso di Lampeduza. Depois de 15 anos, algumas nesgas de céu azul aparecem. Ainda iremos esperar mais 6 anos para o fim do regime militar. Dos 9 aos 30 anos, imerso em uma ditadura. O País do Futuro continua um dos mais desiguais do mundo.

Permanece o binômio de 500 anos: escravidão e latifúndio. As esperanças permanecem. Não sei se é bom ou ruim, mas sempre vivi mais no futuro do que no presente.

Uma impressão errada de que havia uma maioria contra a ditadura se desvanece. Os dois mandatos de Lula, algumas mudanças importantes na educação, direitos trabalhistas, reforma agrária, renda mínima e a política de cotas raciais são avanços importantes.

Tudo é muito difícil. Uma imprensa hostil e pró mercado é hegemônica. Embora haja uma crescente inserção social, claramente expressa em muitos indicadores, não há uma percepção evidente desses avanços sociais e políticos na sociedade.

O segundo governo de Dilma Rousseff fica exposto e fragilizado diante de uma política econômica dúbia e de um congresso clientelista. As famosas jornadas de 2013 ainda são uma incógnita. Não ouvi nenhuma explicação plausível, calcada em fatos e análises consistentes. Essa conversa mole de 20 centavos de aumento da passagem de ônibus é um acinte à inteligência. Como um movimento com aquela magnitude não deixa nenhuma liderança ou movimento permanente. As ações da lava jato e de seus aliados, deixa um mau cheiro de CIA no episódio.

O impeachment e as suas consequências foram um desastre absoluto para o Brasil. Primeiro um atentado brutal à democracia. Mais uma vez a imprensa se posiciona com forte caráter golpista. Corte de direitos trabalhistas históricos, reduções do salário e da renda, transferência de renda maciça para os segmentos já historicamente supremacistas. Incentivo crescente a guerra política e cultural. Sectarismo e ódio ideológico nunca visto antes, invadindo famílias e círculos de amizade e relacionamento.

Os ovos da serpente eclodidos, trazem o retorno de um militarismo que ainda sobrevive e se alimenta dos despojos da guerra fria. O fantasma do inimigo interno é revivido. O negacionismo alimenta o genocídio de centenas de milhares de vidas na pandemia da COVID.

A mentira e as dissimulações estão por toda parte. Uma sociedade paralisada e atônita pouco reage. O sonho de Stefan Zweig se desvaneceu. A fome está de volta. Vemos por toda parte pessoas procurando do que se alimentar no lixo, tal qual o poema O bicho, de Manuel Bandeira.

Somos um país onde o passado convive com o presente e o futuro, às vezes no mesmo bairro. Estamos naufragando como nação e povo. Ainda dá tempo.
___________________
(*) Luiz Philippe Torelly é arquiteto e urbanista.

Você não tem direito de postar comentários

Destaques

Mais Artigos