Dioclécio Luz (*) –
O dia 4 de dezembro de 2021 amanheceu nublado e frio em Brasília. As primeiras chuvas do mês anunciam o fim do período seco e o início das chuvas. O Cerrado que conseguiu sobreviver ao agronegócio fica verde.
Nesse dia o Centro de Ensino Fundamental 1 (CEF 1), localizado no Paranoá, periferia de Brasília, a 15 quilômetros do Congresso Nacional, iria ser entregue aos militares do Corpo de Bombeiros.
Uma assembleia na quadra de esportes com a comunidade escolar – pais, alunos, servidores, autoridades do GDF – maquiaria a decisão tomada antes: a escola pública se tornaria uma Escola Militarizada. Era mais uma que morria no governo Ibaneis Rocha.
Os Bombeiros iriam comandar uma unidade de ensino com 1 mil e 300 alunos do 5º ao 9º ano do ensino fundamental. Essa escola, com excelente infraestrutura, deixaria de ser uma escola para ser um quartel de meninos e meninas.
A assembleia era o fim de um processo suspeito. Professores estavam indignados: não teve discussão precedente. O último debate tinha ocorrido em 2018. Agora pais e professores iriam decidir, às pressas, o futuro dos seus filhos.
Questionado, o diretor do CEF 1, Flávio Fraga, reconheceu que “em 2018 foi a última assembleia que teve desse porte, com tanta gente”. Nesse mesmo ano ele assumiu a direção. Para ele, as discussões nas reuniões de coordenação foram suficientes para caracterizar o debate que lhe cobram.
- Toda coordenação tem debate. Toda semana tem coordenação. E todos os pais que me acessam sabem da necessidade. Houve falas. Houve reuniões de pais. Só não houve formalidade como essa de hoje. O debate sempre existiu.
Assembleias fajutas como essa fazem parte do histórico do processo de mudança de escola pública para militarizada no país. Em Brasília, as assembleias das quatro primeiras escolas ocorreram nas férias de janeiro de 2019.
Às 10 horas a mesa foi formada no CEF 1. Eram seis pessoas, representantes da Polícia Militar, Corpo de Bombeiros, Sindicato dos Professores do Distrito Federal (Sinpro-DF), direção da escola, Administração Regional do Paranoá e Secretaria de Educação. Dos seis, somente a representante do Sinpro-DF, Luciana Custódio, era contra a militarização.
O correto seria o representante do Corpo de Bombeiros, indicado para comandar a escola, fazer a primeira explanação e apresentar o projeto da nova escola. Depois haveria o debate. Mas, a organização do evento, estrategicamente, determinou que a fala primeira seria da diretora de formação do Sinpro-DF, Luciana Custódio. Assim esgotavam-se os argumentos contrários.
O coronel Ferro, da Polícia Militar, veio a seguir. Recitou comovido, letra da música Coração de estudante de Milton Nascimento:
Mas renova-se a esperança
Nova aurora a cada dia
E há que se cuidar do broto
Pra que a vida nos dê flor e fruto
Milton Nascimento fez essa música em homenagem ao estudante Édson Luís, morto pela Polícia Militar no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, em 1968. A ditadura militar estava começando a tornar frequente a tortura, morte e desaparecimento de pessoas contrárias ao regime. Ou seja, na assembleia usaram a memória de um jovem assassinado pelos militares do passado para defender, no presente, o assassinato de uma escola e a imposição de um sistema cruel contra os jovens da periferia.
O Capitão Ronaldo Almeida, do Corpo de Bombeiros, foi último a falar.
- Aluno não pode discutir com professor – disse o militar
Disse ainda que, conforme a pontuação, o aluno pode ser convidado a se retirar do colégio. “Convidado a se retirar”, entenda-se, “expulsão”.
Seus slides exibiram de forma genérica o regime disciplinar. Um deles, intitulado “Atuação militar”, diz o que o militar vai aplicar e executar os regulamentos da escola. Na prática, significa que pode invadir a sala de aula ou qualquer outro espaço para fazer cumprir esse regulamento. Diz também que o policial vai verificar “o estado físico e mental dos alunos”. Como assim? Os Bombeiros irão disponibilizar médicos e psicólogos na entrada para fazer essa avaliação? Ou o Bombeiro já é capaz de, ao olhar, a exemplo de um super-herói da Marvel, fazer um raio-X e diagnosticar o estado de saúde físico e mental do aluno?
O capitão Almeida preferiu o omitir o principal em sua fala: como os Bombeiros irão impor a disciplina na escola.
Ele sabia que se falasse isso perderia eleitores. O oficial não iria dizer que a disciplina é baseada no medo. Não disse que os alunos terão que obedecer as regras de quartel com uma lista de 90 punições; serão vigiados dentro e fora da escola.
O Capitão não falou que as meninas não podem usar batom, o brinco não pode passar da orelha, não podem usar colar, é proibido expor penteado afro, todo cabelo deve estar preso no coque ou rabo de cavalo, não podem se maquiar; ninguém pode ter piercing ou usar camisa fora da calça; os rapazes não podem ter cabelos longos e nem usar brinco. Nessa “escola” é proibido namorar, abraçar, beijar, pegar na mão da pessoa querida – o amor é vetado. Em resumo: o aluno não será mais dono do seu corpo; agora ele pertence aos militares.
Catarina de Almeida Santos, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, pesquisadora do tema, não vê com bons olhos a expansão das escolas militarizadas.
- A gente vê a Escola Militarizada (EM) como uma anti-escola. Porque a escola pública é o espaço da diversidade, o espaço de todas as tribos. É o lugar em que todos os sujeitos, todas as pessoas manifestam suas crenças, suas formas de estar no mundo. É um espaço muito da juventude. E a EM é uma “escola” que padroniza, homogeiniza, define os corpos e comportamentos, então é uma anti-escola. Se a gente pensar a educação como esse espaço de formação e desenvolvimento do sujeito no sentido diverso, então a EM é uma anti-escola. Ela é contrária a todos os princípios da educação.
Os policiais estão impondo aos jovens a pedagogia do medo. É o medo que faz a disciplina. Diz a professora Catarina:
- O que a Polícia faz? Ela leva para escola a pedagogia do quartel. É a pedagogia da hierarquia, da ordem, a partir da obediência aos comandos; a pedagogia do controle, da uniformização, do castigo, da lógica da punição. As normativas que são aplicadas nessa escola fazem com que tudo aquilo que faz da escola uma escola, praticamente não possam acontecer.
O projeto de militarização de escolas públicas, hoje espalhado por todo o país, objetiva claramente calar os jovens da periferia, negros e pardos em sua maioria, colocando-os sob o controle da força policial. Em algumas Unidades da Federação (caso de Goiás, entre outros) a direção da escola é exclusiva da PM; em outras, caso do DF, inventou-se uma direção transgênica, a “gestão compartilhada”. Então, há uma “direção pedagógica”, com os militares, outra “disciplinar”, com os profissionais de educação.
O projeto de militarização das escolas públicas começou na década de 1990, mas ganhou reforço com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência. Alegando motivos nacionalistas, esse defensor da ditadura militar - da tortura e dos torturadores -, criou o “Programa de escola cívico-militares” que, em dois anos (2020 e 2021), implantou 127 delas em 25 Unidades da Federação, ao custo de 43 milhões de reais (dados do MEC). Essas escolas federais estão sob controle das Forças Armadas, aliadas do presidente Bolsonaro. O que causa espanto é que governantes de algumas dessas UF que implantaram o projeto do presidente de ultra-direita, caso da Bahia e Piauí, são de esquerda.
O capitão Almeida, em sua longa explanação, resolveu abordar a legislação que dá lastro ao projeto de militarização de escolas públicas no Distrito Federal. O slide que apresentou intitulado, Legislação, porém, não aponta lei nenhuma!
Slide 2 apresentado pelo Capitão Almeida na assembleia do CEF 1
O fato é que a Escola Militarizada não faz parte do chamado arcabouço legal da educação. Não existe nenhuma referência a esse tipo de escola na Constituição Brasileira, Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) ou Plano Nacional de Educação. Pior, esse modelo de escola se constitui num ataque às leis existentes: fere os artigos 5º, 144, 206, 220 e 227 da Constituição; os Art. 7º e o 58 do Estatuto da Criança e do Adolescente; Arts. 3º e 61 da LDB; inciso I do Art. 11 da Lei nº 8.429/92 (improbidade administrativa). Em Brasília, a lei de gestão de democrática, nº 4.751/12, em vigor, também foi parar no lixo.
Assim, o Capitão Almeida não teria mesmo como mostrar a Legislação que sustenta esse modelo – ela não existe.
Às 11 horas e alguns minutos da manhã, a organização da assembleia decidiu que era o momento de encerrar os debates e dar início ao processo de votação. Isso não é democrático: não se para uma assembleia no meio do debate para fazer a votação. Mas assim foi feito. Enquanto alguns professores e pais ainda falavam ao microfone, a maioria dos presentes se levantou e foi para os fundos do ginásio votar.
Mais tarde foi anunciado o resultado: 71% dos votantes foram favoráveis. Como esperado, o CEF 1 se tornou mais uma Escola Militarizada do Distrito Federal. Será a 13ª anti-escola de Brasília nas mãos dos militares, dessa vez com os Bombeiros. Foi mais um passo do governador Ibaneis em direção à Idade Média. E mais um dia triste para a educação de Brasília.
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(*) Dioclécio Luz é jornalista e autor do livro A Escola do Medo, a ser publicado em breve, sobre as escolas militarizadas no Brasil.