José Lourenço Cindra (*) –
No fim dos anos 1980, a Coreia do Norte já contava com uma indústria bastante desenvolvida e com uma agricultura mecanizada. Tudo funcionava muito bem. Mas, os acontecimentos nefastos que vieram logo em seguida puseram quase tudo a perder. Eles passaram a conviver com um racionamento radical de energia elétrica. As fábricas pararam, havia interrupções frequentes nos transportes.
É fato que na década de 1990, pelo menos 200 mil coreanos morreram de desnutrição e doenças a ela relacionadas. As tropas estadunidenses de ocupação da Coreia do Sul, em conjunto com o exército do governo sul-coreano, passaram a conduzir com grande frequência exercícios militares nas fronteiras terrestres e marítimas da Coreia Popular. Foi a partir de então que a RPDC passou a dedicar grandes somas de seus orçamentos à defesa e à indústria bélica. É nesse contexto adverso que o novo dirigente Kim Jong-il (16/2/1941-17/12/2011), filho do falecido Kim Il-sung, implementa a Ideia Juche e a Política Songun.
Fim da escassez - Parece que o período de grande escassez já passou. Alguns brasileiros que recentemente visitaram a Coreia do Norte puderam constatar isso. Lucas Rubio, o fundador do Centro de Estudos da Política Songun–Brasil, junto com seu amigo Lenan Cunha, teve a oportunidade de visitar a RPDC por ocasião das comemorações dos 70 anos da fundação da Coreia Popular, em setembro de 2018. Eles participaram de cursos, seminários, - inclusive o Seminário Internacional da Ideia Juche -, visitaram museus, escolas, universidades, hospitais e também passearam a pé e de transportes públicos pela cidade.
Segundo relato de Lucas Rúbio, suas impressões sobre a Coreia do Norte foram as melhores possíveis. Apesar das sanções, apesar do bloqueio implacável e de outras dificuldades inerentes à realidade do país, o governo norte-coreano, com base na ideologia Juche de autossustentação e independência, mais a Política Songun de prioridade aos assuntos militares, continua mantendo a orientação socialista e resistindo às chantagens de alguns países capitalistas.
Educação - Para se ter uma ideia do valor que é dado à educação na RPDC, basta olhar para o monumental Palácio das Crianças de Mangyongdae, em Pyongyang, cujas informações estão disponíveis no site do Centro de Estudos da Política Songun–Brasil. Palácios semelhantes ao de Mangyongdae existem em outras cidades norte-coreanas. A primeira universidade estabelecida na Coreia do Norte foi a Universidade Kim Il-sung, fundada em 1946. A Universidade de Ciência e Tecnologia de Pyongyang (PUST), na sigla em inglês, é a única universidade privada na Coreia do Norte, e foi aberta em 2010.
Sob a liderança de Kim Jong-un (8/1/1982), que está à frente do governo desde 2011, a RPDC continua dando ênfase à Política Songun. Ela vem se transformando em um país cientificamente avançado, destacando-se o lançamento do satélite Kwangmyongsong-4 em 2016 (na foto, abaixo) e a criação a Agência Nacional de Desenvolvimento Aéreo Espacial, sendo que o gigantesco Complexo de Ciência e Tecnologia, em Pyongyang está associado a essa Agência.
Foram construídos novos prédios de apartamentos populares e avenidas em Pyongyang e em outras cidades. Esses apartamentos são distribuídos de graça ao povo. Tudo isso mostra que o período mais difícil é coisa do passado. Estes dados estão em História da Revolução Coreana, Edições Nova Cultura, 2019.
O que são as chamadas Ideia Juche e a Política Songun (1)
Os norte-coreanos escrevem que a Ideia Juche é uma ideologia que foi elaborada por Kim Il-sung, adaptada à realidade coreana, ressaltando a importância da independência e da autossuficiência. O fundamento filosófico do Juche está na concepção de que o homem exerce controle sobre o mundo e seu próprio destino, uma vez que ele possui consciência. O Juche parece ser uma combinação de marxismo, coletivismo e nacionalismo, pelo menos é o que se deduz ao ler na Wikipedia. (Abaixo, foto da Torre Juche, em Pyongyang)
A Política Songun é a doutrina segundo a qual, o Estado dá prioridade ao aparato militar. Os militares, além de contribuir para a defesa do país, desempenham um papel importante no desenvolvimento da infraestrutura. Basta dizer que os soldados do Exército Popular trabalharam ao longo da década de 1990 e nas décadas seguintes na construção de dezenas de hidrelétricas, permitindo que a dependência de petróleo, que a Coreia do Norte não produz, fosse drasticamente reduzida.
Foram mitigados os efeitos mais gritantes da pobreza. Mas não se conseguiu ainda retornar aos mesmos padrões de produção anteriores à queda da URSS. As sanções e o bloqueio econômico dificultam muito a vida. Além disso, os principais produtos que a RPDC consegue exportar para os países capitalistas – carvão e metais não ferrosos – e para a China, Vietnã e Cuba, possuem valor agregado médio e baixo, são commodities cujos preços estão sempre oscilando de preferência para baixo no mercado capitalista.
O fluxo de dólares oriundo dessas exportações é extremamente irregular. Foi por isso que surgiu a necessidade da RPDC estabelecer as chamadas Zonas Econômicas Especiais, para receber investimentos estrangeiros. A primeira delas foi a Zona Industrial em Kaesong (2004), em conjunto com a Coreia do Sul, construída em um momento em que as relações entre as duas Coreias estavam menos tensas. Infelizmente, em anos mais recentes, devido às vicissitudes políticas na Coreia do Sul, as poucas relações entre as partes conflitantes estão mais frias.
Visita de brasileiro - O historiador e político brasileiro Raul Carrion fez parte de uma delegação, formada por historiadores, estudiosos das Relações Internacionais e lideranças sociais e políticas, que visitaram a RPDC em julho de 2014. Suas impressões sobre o país foram muito boas. Ele esteve em diversas localidades da Coreia do Norte, e disse não ter visto um país tão empobrecido e isolado como a mídia gosta de mostrar. Dificuldades as há e muitas, principalmente, como consequências do bloqueio econômico implacável imposto pelos EUA contra a Coreia do Norte.
Em um vídeo mais recente sobre a RPDC, ele realçou que 100% da população tem água e esgoto tratados. Todos têm moradia, saúde e educação gratuitas e transporte subsidiado. Não há mendicância. O setor industrial é bastante diversificado, produzindo desde turbinas e locomotivas até bens de consumo em geral. Na agricultura predominam as cooperativas, ao lado de algumas fazendas estatais. A RPDC mantém relações diplomáticas com 160 países, como se pode falar de um país tão isolado assim?
Diplomacia - Relações diplomáticas em nível de embaixadas não chegam a 25 países, incluindo alguns importantes como a China, Rússia, Reino Unido, Alemanha, Brasil e Suécia. O país investe forte em ciência e tecnologia. Há uma grande preocupação com a preservação ambiental. O Palácio do Povo em Pyongyang tem um acervo de 30 milhões de livros com catálogos digitalizados, com acesso à intranet norte-coreana, grande parte é de literatura estrangeira. Nesse palácio, muitas atividades culturais e de formação acontecem, inclusive, cursos de muitas línguas estrangeiras.
Impostos abolidos - Uma curiosidade interessante que Carrion narra em seu vídeo é que lá não existem impostos, eles foram abolidos desde os anos de 1970. Quanto às relações de trabalho, segundo ele, a jornada é de 8 horas com um dia de descanso semanal e 20 dias de férias. As mulheres podem aposentar aos 55 e os homens aos 60 anos. Não há igualitarismo salarial, mas também não há diferenças discrepantes de salário. Remunera-se mais, não apenas o trabalho qualificado, mas também o trabalho penoso.
O regime socialista estabelecidos pelos norte-coreanos é um tanto sui generis. Lá realmente existe um culto muito acentuado aos seus líderes, o que é difícil de ser compreendido para nós ocidentais. Como afirmam alguns, lá o marxismo está fortemente mesclado pelas tradições neoconfucionistas da Coreia. Mas quem deve decidir o que é bom e o que não é bom para o país, é seu próprio povo.
O governo da RPDC mantém seu interesse em conseguir a reunificação da península coreana, mas a questão é complexa (abaixo, Monumento à Reunificação da Coreia, em Pyongyang). O governo da Coreia Sul não tem autonomia para decidir muita coisa. Ele depende da vontade do governo norte-americano, enquanto esse parece estar satisfeito com a política de dividir para reinar. Por outro lado, atualmente as diferenças entre os dois países são muito grandes, tornando-se a reunificação da Coreia na base de um governo e dois regimes econômicos, no estilo que a China fez em relação a Hong-Kong e Macau, bastante difícil.
Liberdade - Muitos alegam que os cidadãos da Coreia do Norte não têm liberdade política, que há violações dos direitos humanos, ou que não há liberdade religiosa e coisas do estilo. Na realidade, pelo menos formalmente, a Constituição da RPDC prevê liberdade religiosa e certos direitos fundamentais dos cidadãos. Há três partidos políticos na Coreia do Norte, sendo que o Partido do Trabalhadores da Coreia (PTC) é o partido dirigente do país. O emblema do PTC é uma adaptação da foice e o martelo, com um pincel tradicional da caligrafia coreana. Mas o governo norte-coreano não pode se dar ao luxo de aceitar a existência de grupos dissidentes atuando contra o socialismo. De modo semelhante, o governo da Coreia do Sul não aceita sequer a existência de um partido comunista em seu território, e a Lei de Segurança Nacional de 1948, que proíbe qualquer referência positiva em relação ao regime político-social da Coreia do Norte está ainda em vigor.
A liberdade em abstrato é um termo muito bonito, mas a realidade concreta é que vai determiná-la. É como disse Fidel Castro: “Em uma fortaleza sitiada, qualquer dissidência é traição”. A Coreia do Norte, talvez até mais que Cuba, continua sendo uma fortaleza sitiada pelo imperialismo. Mas, ao mesmo tempo, ela é uma prova eloquente de que o socialismo é possível, mas, para isso, é preciso uma vontade férrea e muita disciplina. Se mesmo submetida a todas as sanções e boicotes econômicos e diplomáticos, os norte-coreanos conseguiram reerguer um país a partir das cinzas, o que não teria sido feito se as condições tivessem sido mais favoráveis?
Por fim, encerro este artigo com os dizeres de Raul Carrion:
“Frustrados por não terem conseguido forçar a RPDC ao colapso nos anos que se seguiram ao desmantelamento do socialismo no Leste Europeu, os EUA continuam tentando por todos os meios estrangulá-la, sem qualquer respeito para com a autodeterminação dos povos e o Direito Internacional. Os EUA mantêm 30 mil soldados e mais mil artefatos nucleares na Coreia do Sul. Ameaçam permanentemente a RPDC com os seus B-52 e suas bases nucleares no Havaí e em Guam. Os EUA não conseguem liquidar com a RPDC devido ao seu poderio nuclear. Essa é a única garantia da paz” (Raul Carrion, Relatório de Viagem à RPDC, julho de 2014, Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul).
De fato, o governo da RPDC nunca invadiu país algum, nunca ameaçou ninguém com suas bombas nucleares. O armamento da RPDC desempenha um papel exclusivamente dissuasivo. A propaganda pró-imperialista é que faz uma lavagem cerebral nas populações de todos os países, com sua histeria de “ameaça da Coreia do Norte”.
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(1) Artigo 3 da Constituição: A República Popular Democrática da Coreia é guiada em suas atividades pela Ideia Juche e a Ideia Songun, uma concepção do mundo centrada no povo, uma ideologia revolucionária para alcançar a independência das massas populares.
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(*) José Lourenço Cindra é professor de física na Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Guaratinguetá.