Ana Cristina Campos (*) –
Tarde de praia no Posto 9, Ipanema. Caetano Veloso explica a Jorge Mautner porque escolhera a expressão “Doces Bárbaros” para batizar a união dos quatro amigos baianos, num show antológico, nos idos de 1976. Caetano reclamava de uma certa crítica carioca que, à época, se referia a eles como baihunos, em alusão aos povos ditos bárbaros que atacavam o Império Romano.
– Mas nós somos bárbaros doces, sacou Veloso, ao que Mautner ponderou: Como Jesus, o Nazareno. Ele é que é o doce bárbaro, porque os outros bárbaros invadiram Roma de maneira violenta e não conseguiram um milésimo do que Jesus conseguiu para destruir o Império Romano com doçura, com perdão e compaixão.
Nesta segunda-feira, depois de assistir à entrevista de Fernando Haddad no Roda Viva, lembrei da conversa de Caetano e Mautner em torno da doçura e pensei: o Brasil, país da delicadeza perdida, está preparado para ter um presidente elegante, culto, bem humorado, aberto ao diálogo e pouquíssimo afeito à lacração? Sem nenhuma necessidade de, para se afirmar, ofender o opositor? Alguém que não confunde gentileza com fragilidade e que não se sente apequenado ou inseguro ao lado de uma grande mulher? E que, para enfrentar um inimigo violento e derrotá-lo, não prega ódio nem vingança mas justiça, sem truculência? Talvez sim, o país esteja preparado. Mas Haddad é do PT...
E daí? O PT tem 40 anos de luta por afirmação da democracia e um DNA admirável e nada fácil de apagar, composto por Antônio Cândido, Sérgio Buarque de Holanda, Hélio Pelegrino, Lélia Abramo, Mário Pedrosa, Paulo Freire, Maria da Conceição Tavares, Marilena Chauí, lideranças sindicais populares com Lula da Silva à frente e religiosas, como Frei Beto e Frei Leonardo Boff. É a esta estirpe política e a este legado que Fernando Haddad se filia e reverencia, apesar da cevadura cotidiana a que o partido e seu líder mais popular são submetidos há décadas.
O PT pagou alto preço por firmar legitimamente uma hegemonia para fazer frente a séculos de massacre da soberania nacional e popular. Esta afirmação soberana não se constrói do dia pra noite. Não é simples e necessita de adesão. Isto é fazer política. Sem alianças e fora da política –esta com que o surraram e o desqualificaram, oportunisticamente –, só resta a guerra. E ela veio, impondo o caos em que estamos imersos, perplexos, desde 2013.
Com isso não estou dizendo que não houve erros e omissões nesse caminho. Claro que sim, e devem ser apontados e corrigidos dentro do jogo democrático – como os erros da ditadura implantada com o golpe de 64, por exemplo, e os cometidos pelos outros governos e apoiados pelas instituições, com a “Nova República”.
Antes de críticas ferinas e exigências maliciosas dirigidas ao Partido dos Trabalhadores, ressaltem-se a legítima tentativa de rompimento com o passado subserviente e o empenho em minorar a brutal desigualdade social. E vejam que, mesmo sem ser radical, a iniciativa foi golpeada. A "Casa Grande", como o jornalista Mino Carta apelidou os donos do poder e do dinheiro, pra não ter que, injustamente, chamá-los de "elite", é implacável, é inarredável em seu viés exclusivista, forjado pela cultura escravagista.
Agora, com o absoluto e demolidor desgoverno e pandemia, temos que voltar a fazer política, a que foi demonizada e criminalizada com Lula, em aliança com as forças que ajudaram a golpear um brando projeto de inclusão social.
Nossa condição de ex-colônia tem mostrado que nossa atenção deve estar focada , em parte, na luta contra opressores de fora e associados de dentro do território. Temos que estar cada vez mais e permanentemente preparados para os ataques que a inveja de nossa exuberância natural e mesmo cultural, provocam.
Torço pelos doces bárbaros – quero estar com eles/elas – que estão nos resgatando e que continuarão a nos resgatar dessa tentativa torpe de imposição do Império da morte violenta de todas as nossas melhores possibilidades tropicais.
Haddad certamente está entre eles.
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(*) Ana Cristina Campos é historiadora e produtora de audiovisual.