"A vida é de quem se atreve a viver".


Benny Schvasbergh: "É imprescindível que o tema da moradia mista no centro de Brasília seja objeto de retomada de debates e audiências públicas em vista da revisão do PDOT e do PPCUB".
Preservar, dinamizar e democratizar o centro de Brasília com moradia

Benny Schvarsberg (*)

Saúdo a iniciativa da equipe técnica da área urbanística do Governo do Distrito Federal pela iniciativa e retomada do debate sobre moradia em área central da cidade. Em tempos obscuros de retrocessos nos direitos sociais no Brasil é uma iniciativa corajosa colocar na agenda do debate público um tema tão polêmico quanto sempre camuflado em dogmas e tabus.

Esse tema é parte fundamental do Direito à Cidade e da pauta preconizada pelo movimento da reforma urbana no Brasil que tem no Estatuto da Cidade e no princípio da função social da cidade e da propriedade seus marcos referenciais.

A propósito da polêmica levantada pela retomada do debate, retomo aqui uma reflexão propositiva apresentada em seminário promovido em fins de 2017 pela então Secretaria de Gestão do Território e Habitação (Segeth/GDF), com participação de representantes de amplos segmentos técnicos e sociais interessados nesse debate histórico para a cidade.

Há quem afirme que já existe moradia no centro de Brasília: pois há pessoas que moram de forma mais ou menos clandestina, ou “escondidinhas”, como diria o professor Frederico de Holanda, em imóveis destinados a lojas, escritórios, salas comerciais, em pousadas ilegais, etc. E, sobretudo, porque existem os setores hoteleiros que servem como moradia temporária ou esporádica para visitantes e mesmo moradores eventuais.

Recordo o episódio de um amigo que brigou com a mulher e foi provisoriamente para um hotelzinho no setor hoteleiro no fim de semana; ele ficou tão deprimido com aquele lugar que rapidinho voltou para casa.

O que ilustro com esse exemplo é o quanto é questionável falar-se de habitação no centro nesses tipos de moradias provisórias, precárias ou clandestinas. E que há um enorme risco de, ao abrir o debate sobre moradia no centro, incorrer ou resultar numa mera expansão de hotéis, apart-hotéis ou até hostels, a ser consumida vorazmente de forma “enobrecida” e socialmente excludente pelo mercado imobiliário. Não creio que esse padrão poderia caracterizar uma transformação que poderia ser qualificada de Revitalização do Centro da Cidade. Ao contrário, só iria aprofundar o padrão de vida social e urbana existente e que pouco contribui para dinamizar a urbanidade; nem para otimizar a infraestrutura e efetivamente democratizar o centro da cidade, ao mesmo tempo em que reforçasse a escala gregária que lhe é reconhecida nos documentos técnicos da preservação patrimonial.

A proposta de estratégia que sugiro como contribuição ao debate é na perspectiva de uma Política Urbana e Habitacional de Interesse Social e Específico no Centro Metropolitano da Cidade com uma utilização combinada de um conjunto de instrumentos de política urbana e habitacional para aplicação criteriosa em setores centrais do Plano Piloto, não só o SCS, como também o SCN, SAUS, SAUN, SBS, SBN, W3 sul e norte, e outros.

Lembro a título de exemplo de usos combinados já existentes legalmente, que no final da W3 Norte já existe há décadas um raro e pouco conhecido uso misto com atividades comerciais no térreo e moradia nos andares superiores que ajuda a democratizar o elitizado Plano Piloto. Sem que essa prática comprometa os princípios do tombamento e da preservação patrimonial da cidade. Os instrumentos aplicáveis, inicialmente possíveis de serem utilizados de forma complementar seriam seis:

  1. Promover uma Demarcação Urbanística, definindo perímetros com áreas e imóveis vazios (na área central são mais de cinco mil, conforme a Seduh) ou que subutilizam seu potencial construtivo máximo;
  2. Regulamentar a aplicabilidade do PEUC (parcelamento, edificação e utilização compulsória), sobretudo em imóveis subutilizados notificando-os e dando prazo de um ano para apresentação de projeto de reedificação ou reutilização compulsória;
  3. Regulamentar a aplicabilidade do IPTU (imposto predial e territorial urbano) progressivo, especialmente com foco estratégico nas áreas centrais e entornos imediatos;
  4. Planejar a gravação cirúrgica de algumas áreas desses setores centrais como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) Centro, definindo para elas as regras e parâmetros urbanísticos e edilícios específicos;
  1. Mapear e definir todos os imóveis privados nos setores centrais, tecnicamente estudados como passiveis de gravação para efeito de aplicação do instrumento do Direito de Preempção – preferência dada ao poder público se o proprietário por à venda o imóvel –, articulando a eventual disponibilização de compra desses imóveis em um programa de Habitação de Interesse Social em convenio com a União para viabilizar a utilização de recursos do Fundo Nacional de Habitação Social e do Orçamento Geral da União na reprogramação e reconversão desses imóveis na política habitacional do DF. Inclusive utilizando-os para Locação Social;
  1. Operação Urbana Consorciada Morar no Centro Perto do Trabalho, voltada para várias faixas sociais, mas garantindo ao menos 25% para a faixa de até três salários mínimos.

Um programa urbano dessa natureza, simultaneamente habitacional e de intervenções arquitetônicas e paisagísticas de requalificação do Centro, possui um caráter democrático simbólico inovador na capital do país, atualizando seu papel histórico de vanguarda do pensamento urbanístico tão bem protagonizado por Lúcio Costa desde o concurso para o projeto do plano piloto de Brasília de 1957. Cabe lembrar que o inventor da cidade no texto de memorial do projeto descrevia usos predominantes, não exclusivos.

Claro que definições de aplicabilidade dessa cesta básica de instrumentos nas áreas centrais da cidade precisam ser feitas rigorosamente em conjunto com o planejamento da mobilidade urbana nestas áreas, com ênfase na mobilidade ativa (pedestres e ciclistas), com a previsão dessas possibilidades de destinação garantidas no Plano de Preservação do Centro Urbanístico de Brasília – PPCUB – (na perspectiva de usos residenciais não predominantes mas complementares às demais destinações previstas para as áreas centrais do polígono do tombamento) e na revisão do PDTU (Plano Diretor de Transportes Públicos) em andamento. Além de passar pela análise criteriosa do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan) – afinal morar no centro ajuda a consolidar a escala gregária preconizada no projeto urbanístico da cidade - e do Conselho de Planejamento Territorial e Urbano (Conplan), de forma consequente com a Política Habitacional do DF que se encontra em exame na revisão do Plandhis (Plano de Habitação de Interesse Social do DF).

Seria interessante também nessa estratégia de política habitacional para o centro pensar um mix de “Modalidade Entidades” do Programa MCMV (Minha Casa Minha Vida), que produziu reconhecidamente pela literatura técnica as experiências de melhor qualidade de projeto de arquitetura e de implantação urbana. Bem como pela rica experiência de auto-gestão promovida pelo sistema de cooperativas no Uruguai. Ambas, “Modalidade Entidades no Brasil” e “Auto-gestão cooperativas no Uruguai” encorajaram projetos de arquitetura de qualidade superior que mereceram exposições e seminários de debates nacionais e internacionais.

Há inúmeros projetos elaborados na FAU/UnB e outras faculdades de arquitetura e urbanismo com propostas criativas de uso e ocupação misto com moradias para baixas e medias rendas nos setores centrais da cidade. O GDF, em parceria com estas instituições acadêmicas, o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) e Sindicato dos Arquitetos do DF (Sindarq), podem cooperar na organização de um banco de ideias e projetos para o centro que podem impulsionar concursos e oficinas de projetos arquitetônicos e urbanísticos.

Por fim, é imprescindível que o tema seja objeto de retomada de debates e audiências públicas em vista da revisão do Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT) e do Plandhis, bem como da longamente aguardada reapresentação ao debate público do PPCUB.

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(*) Benny Schvarsberg é Professor Titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB, colaborador do BR CIDADES - Núcleo DF Metropolitano.

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