"A vida é de quem se atreve a viver".


Exposição: À vista – paisagem em contorno, de Bruna Neiva, Cecilia Bona, Iris Helena, Júlia Milward, Karina Dias, Lucian Paiva, Nina Orthof, Raquel Nava e Yana Tamayo. Sala Funarte.
Corpo, casa, céu – narrativas do efêmero

Maria Lúcia Verdi –

Estão abertas ao público brasiliense duas mostras muito interessantes e que, de um modo sutil, dialogam. Uma no CCBB: Erwin Wurm – o corpo é a casa, com curadoria de Marcello Dantas; outra, na Galeria Fayga Ostrower, na Funarte: À vista – paisagem em contorno, com curadoria de Marília Panitz expondo trabalhos das jovens brasilienses Bruna Neiva, Cecilia Bona, Iris Helena, Júlia Milward, Karina Dias, Lucian Paiva, Nina Orthof, Raquel Nava e Yana Tamayo.

 

O que, para mim, une as duas mostras tem a ver, em primeiro lugar, com Lewis Caroll e sua Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho.

 

Como Alice, que se pergunta sobre a irrealidade do que vê e escuta, sobre a inversão, o exagero, o absurdo e a impossibilidade, nos indagamos sobre o provocador humor das esculturas, fotos e vídeos de Wurm, que reinventa objetos e situações, relê o corriqueiro que está em nosso entorno, fazendo com que nos perguntemos: será que não vale a pena olhar mais devagar para as coisas?

 

O que é uma “interpretação” da realidade? Também como Alice, vemos algumas das obras expostas na Funarte (sobretudo nos trabalhos de Raquel Nava) e nos dizemos: sim, isto também pode servir para outra coisa ou o que é a impossibilidade?

 

Em segundo lugar, penso em duas ideias centrais de Heidegger - a linguagem é a morada do ser e Ser é Tempo. Ele nos fala da linguagem como o que diferencia o ser humano dos outros entes - nessa linguagem incluídas a fala do silencio e do sonho. Muito silêncio e o sonho na mostra da Funarte.

 

Wurm instalou a maior de suas esculturas, A Casa Gorda, na Galeria de Vidro do CCBB. Esta imperdível obra, que diz um texto para um público às vezes perplexo, me parece reunir Gertrude Stein e Heidegger.

 

O desenho da adorável casa falante, além de evidentemente recordar as dobras do corpo, em sua arquitetura evoca o desenho da rústica cabana do grande filósofo alemão na Floresta Negra.

 

Duvidar do que se vê, se lê e se escuta. Resistir ao discurso da banalidade imposto pela Indústria Cultural – no perigoso novo realismo fantástico que é o deste século – algo de que tratam alguns dos vídeos de Wurm como “Conte!” e “Amo minha época, não gosto de minha época”.

 

O texto que a casa pronuncia poderia ter sido escrito pela vanguardista Stein – as repetições, as perguntas e afirmações simples, que forçam um repensar.

 

A obra de Wurm coloca no liquidificador uma série de pensadores e criadores (como se pode ver no Mapa Mental colocado na entrada) e produz algo ao mesmo tempo simples e surpreendente, como a instalação com 17 pepinos que se transformam, não apenas nos óbvios falos, mas em monólitos silenciosos, como num belo Koan a nos indagar.

 

Está presente numa divertida escultura Theodor Adorno - um dos teóricos da Dialética do Esclarecimento, filósofo que critica a Razão e valoriza a Arte por ela se conectar com o irracional e o contraditório, criador do conceito de “indústria cultural” - com seu corpo transformado num hambúrguer.

 

O nosso é um tempo em que tudo vira comestível, até mesmo as grandes ideias, divulgadas na rede em frases célebres.

 

As obras das jovens brasilienses, em sua maioria, também desconstroem a linguagem do olhar sobre objetos do dia a dia à vista nas paisagens.

 

Na Galeria se escutam, discretos, o ruído do mar (no ótimo vídeo beira ar, de Nina Orthof), do trânsito de Paris (Karina Dias e o vídeo de uma fresta horizontal que se desloca, revelando fragmentos de uma rua parisiense) e de pedras (o som predominante, no terreno instável: paisagem razão, de Cecília Bona) que rolam; as fotos do apartamento vazio de Bruna Neiva, no visita àninguém, expostas em círculo, apenas o sujeito em seu silencioso espaço-tempo.

 

Recortando detalhes, pinçando coisas, criando um conjunto que mapeia territórios (a ótima cartografia sentimental de Yana Tamayo), àvista desvela paisagens que são atentas, curiosas narrativas do efêmero.

 

Num mundo em que, nas palavras de Heidegger, “A luz da publicidade obscurece tudo” é oportuno visitarmos esses espaços críticos que estão na cidade. Levar as crianças, vê-las rir com as esculturas de Wurm, vê-las inventar as suas próprias criações interagindo com as propostas do artista na One minute sculptures (não percam o ótimo vídeo 56 Posições) que prenunciaram, nos anos oitenta, como lembra Marcello Dantas, o comportamento autorreferencial que a Internet iria popularizar.

 

Levá-las antes ou depois à Funarte, sentar nos bancos acolhedores que estão instalados no Parque Funcional, antes ou depois de visitar “à vista” e ver as crianças rirem com os bichos de Nava.

 

Deitar no céu que Carlos Silva nos oferece em seu lírico banco e dali observar o ícone maior de Brasília, levantando bem o pescoço.

 

Na Cidade, antes ou depois, o Ser no Tempo permanentemente colocado em questão por um céu inquietante que revela sem parar, em 360 graus, que, afinal, somos poeira de estrelas.

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