Trink, trink, Brüderlein trink!

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) - Dizem que todo ano, na madrugada de 5 para 6 de maio, dois espectros, um alemão, outro austríaco, rondam a Zona Norte de Londres, o primeiro saindo do Cemitério de Highgate e o outro do Crematório Golders Green, relativamente pertos.

Os fantasmas costumam se encontrar na pizzaria L’Artista, nas proximidades da estação Golders Green do metrô, para tomar uma taça de vinho. Quando dá meia-noite, o garçom berra o “last orders!” e daí eles tomam as ruas de assalto como se fossem os céus e ficam zanzando até o galo cantar, uma força de expressão incapaz de vencer a expressão da força e barulho da indústria avícola, por suposto.

– Freud, que prazer revê-lo firme e forte! Completando 167 anos, né? Parece que tem só 150…

– Ô, Marx, bondade sua! E você com 205, nem parece também... Quem sabe 180! Você ficou muito mais jovem sem a juba!

– Pois é, tosei naquela viagem à Argélia. Ih, já te contei essa história tantas vezes! Daqui a pouco lá vem você com o Complexo do Rei Lear, a lenga-lenga do leão que abriu mão da majestade etc e tal. Abri porra nenhuma! Cê sabe que na época eu andei discutindo com a Veruschka Zasulitch outras possibilidades para a Revolução, não é! Cogitei que talvez fosse possível dar um salto direto da comuna rural para o Socialismo. O presidente Mao não me deixa mentir, e eu espero que o Stédile não me decepcione!

– O seu problema, Marx, é esse tom assertivo-professoral, que deixa o ouvinte sempre com a impressão de que você é um voluntarista da pior espécie! Eu sei que não é o caso, que você descartou a teleologia hegeliana etc. Mas até explicar que tomada elétrica não é focinho de porco, dá um trabalho danado. Eu sei disso porque formulei a ideia do desejo como a própria essência do homem.

– Ô, Sig, conceito que você copiou do velho Spinoza sem citar ele, né! Só depois de ler a Marilena Chaui eu fui reconhecer o seu mérito próprio. Mas, assim como o Benedito, você fala do desejo como exuberância, como entusiasmo, como o impulso, a pulsão que temos para continuar a viver, mas, nota bene, de maneira plena. É o contrário do desejo como o entendem e exploram os capitalistas, sinônimo de carência, de falta artificial das mercadorias que eles ficam nos empurrando para comprar e comprar sempre mais, sempre mais, segundo a moda!

– Exatamente, sem tirar nem pôr! Eu devo confessar, Carlinhos, que também me inspirei na sua teoria do fetichismo da mercadoria. Por isso eu digo que os consumidores são crianças crescidas em busca de brinquedos. Antes queriam um trenzinho, agora uma BMW! Antes, uma peteca, agora um iPhone 14 Pro com Super Retina XDR, grande angular de 48 MP, Chip 16 Bionic e tal.

– Você é foda, Sig! Sempre atual! E não me venha com a mania de me analisar por causa dos palavrões, caray!

– Ô, boca suja! Outra infantilidade…

– Kkkkkk! Mein Freud! Mein Freund! Sabe que eu notei certa ironia na hora que você disse que estou parecendo mais jovem. Você pronunciou “jünger” de uma maneira tão… melíflua, digamos! Você nunca perdoou o Jung, né?

– Discípulos! Como os filhos, estão sempre querendo encher o saco e negar o pai! Brigou comigo por causa da teoria sexual, o santinho de pau oco moralista! O Carl Gustav é um daqueles místicos terrivelmente cristãos. Não dá pra confiar!

– Eu também não tive muita sorte com certos discípulos, alguns extravagantes. Por isso tratei de deixar claro que eu mesmo nunca fui “marxista”, outro palavrão! Mas vamos beber, sô! Eu trouxe aqui duas garrafas do Mosela da safra de 1998 que o Engels me mandou de presente.

– Engels! É o seu anjo da guarda, né! O seu Schutzengel! Que figura simpática!

– Mais do que um irmão pra mim! Mas vamos beber e deixar de lado essas efusões sentimentaloides… Se não, daqui a pouco a gente vai começar a chorar, e não pega bem ver fantasmas que choram!

– Kkkkkk, vou ligar pro Reco do Bandolim para sugerir esse nome prum grupo de chorinho alemão: Die weinenden Gespenster! Os Fantasmas Chorões!

– Ô, Sig, por falar em chorar, dia desses eu chorei de tanto rir quando li algumas páginas escalafobéticas de um discípulo seu, um tal de Jacques Lacan. O cara compara o órgão sexual masculino com a raiz quadrada de menos um. Quaquaraquaquá! O pinto da gente, diz o francês, é um número imaginário! Me diga aê, esse algoritmo do Lacan não desmoraliza a sua teoria do complexo de castração? Não é bem concreto o pinto do menino que tem medo de o pai cortar como castigo por desejar a mulher dele? Ô, Freudchen, cê também tem cada ideia, cara! Imagina, eu nunca desejei a minha mãe, a Dona Henriette… Claro que eu quis a herança dela, mas o meu pai já tinha morrido há muito tempo.

– Ô, Marx, eu não vou discutir isso agora com você, não! Nós viemos aqui pra beber ou pra ficar discutindo as doidices dos nossos discípulos?

– Raiz quadrada de menos um! Que lacanagem, Sigchen!

– Por falar em beber, Karl, o que que está acontecendo? Faz tempo que eu não via tanto bebum nas ruas de Londres. Que balbúrdia é essa?

– Uai, são os súditos do Reino se calibrando pra acompanhar a coroação do idiota do Charles III na manhã deste sábado! Kkkkkkk, no dia do aniversário do Freud! Que comemoração! Ô, Sig, você já estudou o fetiche do Charles pelos tampões da Camilla?

– Ah, vai te foder, Karlchen!

– Olha o palavrão, Sig! Segura a periquita!

– Quaquaraquaquá, quem riu?

– Quaquaraquaquá, fui eu!

Ouviu-se então até o Sol raiar os dois espectros, um alemão, outro austríaco, que rondam Londres uma vez por ano, na madrugada de 5 para 6 de maio, entoando essa canção: “Trink, trink, Brüderlein trink, / Laß doch die Sorgen zu Haus!”

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