- Antônio Carlos Queiroz (ACQ)
Se o cronista não agarra o leitor ou a leitora logo de início - babau! -, a vítima escapa e não vai além do primeiro parágrafo. Alguns escritores já fazem do título uma isca, enfeitando-o com um palavrão ou com uma bênção, conforme o leitorado.
Aqui o título escandaloso ficou disfarçado em alemão. Não espalhem, por favor, mas a frase significa algo como “Me lamba o rabo”, e é o título de um cânone para seis vozes de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-91). Quem quiser ouvir, tem no YouTube.
Já tendo agarrado um monte de leitores com essa baixaria, justifico: eu tinha em mente estrear as minhas Crônicas & Agudas com alguns comentários sobre os 250 anos do Beethoven (17 de dezembro). Beethoven é o meu crush! Acontece que o Mozart faz aniversário nesta segunda-feira, 264 anos. E como não é possível separar o Diabo de Deus, também não se pode conceber Beethoven sem a existência do Mozart e, claro, do Haydn.
Quase sozinhos, Mozart e Haydn definiram o período clássico da música. Discípulo e herdeiro dos dois gigantes, no sentido da “angústia da influência” do crítico literário Harold Bloom, Beethoven inaugurou o romantismo. Há quem ache que juntar os três numa fila evolutiva distorce a história da música. Faz sentido, mas o fato é que eles formam uma trindade diabolicamente divina ou divinamente diabólica, conforme a preferência de quem ouve.
Anjos - Mozart é tido por muitos como o músico mais perfeito de todos, por sua clareza harmônica, invenção melódica, equilíbrio, eufonia. Ele transpunha para o papel, quase sem correções, a música que já havia composto na cabeça. É como se ele tivesse sido inspirado por anjos atravessadores de copiosa música celeste (mais de 600 peças!). Essa só pode ser a explicação, dizem, para o que consideram um enigma. A verdade, no entanto, é que o seu anjo da guarda foi o pai, Leopold Mozart.
Aluno de um colégio jesuíta, Leopold estudou lógica, teologia e ciências, tendo investido a sua curiosidade no manuseio de microscópios e telescópios. Foi ator, cantor e exímio violinista e organista. Compôs dezenas de sinfonias, sonatas, serenatas, oratórios, concertos, marchas, minuetos, música para teatro, danças de ópera etc. De tudo isso sobraram poucas peças, revelando um competente compositor, que foi obviamente eclipsado pelo filho. Com todas essas credenciais, Leopold não só iniciou Mozart no mundo da música como se tornou o seu primeiro empresário e o apresentou ao mundo.
Muitos críticos falaram muito mal de Leopold, taxando-o como um sujeito autoritário, manipulador, que teria apresentado o filho prodígio à sociedade (nobreza e clero) como um macaco de circo, só para ganhar dinheiro. Não é que não haja alguma verdade nessas observações, mas os críticos, comprometidos com o conceito romântico de gênio, sempre quiseram isolar o “ser celestial” de suas origens terrestres. A despeito das desavenças, que foram muitas, Mozart nunca deixou de prezar o pai, tendo ficado arrasado quando ele morreu, como confessou ao seu amigo Gottfried von Jacquin.
Rock and roll? - Para comemorar a efeméride, passei o sábado ouvindo Mozart. O andante do Concerto para piano nº 21, K 467, mein Gott! O adágio da Sonata para piano nº 17, K 570, putz! A Sonata nº 10, K 330 e a Sonata nº 11, K 331, caramba! A Sinfonia 29, K 543, caralho! O Quinteto para Clarineta K 581 (mais e mais exclamações)!
Dentre as óperas, o elemento escreveu quatro obras-primas, um fato sem paralelo que o consagra como compositor vocal, principalmente: Don Giovanni, As Bodas de Fígaro, Così Fan Tutte e a Flauta Mágica.
O que se pode dizer depois de ouvir a Lucia Popp cantando a ária da Rainha da Noite, por exemplo? Nada! O jeito é engolir em seco e ouvir até o final a Flauta Mágica, uma deliciosa mistura de gêneros, como anotou Otto Maria Carpeaux: grande ópera séria de tipo italiano, comédia musical popular, tragédia filosófica, drama sentimental etc. “Em síntese, o Universo da música”, diz Carpeaux.
Perguntei de supetão a opinião da minha filha, Marina, uma pianista lisztiana. Para ela as músicas do Mozart são lindas, ricas de sentimentos, por vezes sublimes. “Um compositor completo”, disse. “E gosto de tocar as peças dele como se fossem rock’n’roll”! Rock? “Uai, você não acha que parece rock? Aquele tanto de escalas, arpeggios e baixos Alberti?”
Fui olhar na Wikipédia que diabos o Domenico Alberti (1710-1740) tem a ver com isso, e fiquei sabendo que o baixo Alberti é um tipo de acorde quebrado, um acompanhamento arpegiado (de sobe e desce) em que as notas se sucedem na ordem grave-aguda-média-aguda, repetidas em seguida, como no início da Sonata nº 16 K 545, a Sonata Fácil. Ouçam a peça no YouTube com a Mitsuko Uchida!
Subversão - Mozart e Haydn viveram em Salzburgo numa época em que os músicos eram tratados pela nobreza como criados, e num ambiente de suspeição contra os ventos revolucionários que sopravam da França. Mozart, que não se interessava por política, conseguiu se preservar. Ele poderia ter escrachado nobres e curas nas Bodas de Fígaro, mas Lorenzo da Ponte, o seu parceiro libretista e companheiro de farra, amenizou o script. A subversão ficou na música, subversivamente maravilhosa.
Depois de ser demitido pelo patrão, o arcebispo (e violinista) Hieronymus Joseph Franz de Paula Graf Colloredo von Wallsee und Melz, Mozart foi escorraçado de seu palácio com um pé na bunda (literal!) do conde Arco, o mordomo de Colloredo. Passou a viver de encomendas, e a mais famosa delas é o Réquiem em ré menor (K 626), que deixou incompleto perto de sua morte, gerando um dos numerosos mitos que envolvem a sua carreira. Disseram que ele compôs a peça (de novo, sensacional!) para si mesmo.
Mitos desfeitos – Ao contrário do que mostrou o filme Amadeus (Peter Shaffer, 1984), não é verdade que Mozart tenha vivido na miséria ou deixado dívidas enormes para a viúva, Constanze. Ele era, sim, desorganizado e passou apertos, talvez porque, também, parece que a mulher gastava demais. Também não é verdade que ele tenha sido envenenado, nem que tenha sido enterrado como mendigo numa vala comum. Enterros coletivos, um pouco mais baratos, eram comuns e não significavam nenhuma desonra.
Depois de sair de baixo das asas de Colloredo, em 1781, e deixar de ser o menino prodígio que havia encantado Viena, é claro que Mozart teve que ralar muito, disputando o mercado. Começou assim a abrir o caminho que depois seria trilhado por Beethoven, o revolucionário da trinca, que haveria de inverter os papéis: em vez de fazer mesuras para os nobres, como Mozart e Haydn faziam, ele desprezava a Corte e os que lambiam as suas polainas, como aconteceu certa vez num passeio com Johann Wolfgang von Goethe. Mas essa é história para outra oportunidade.
Um dos mitos mais recentes e sacanas é que Mozart teria sofrido a síndrome de Gilles de la Tourette. As evidências seriam o seu gênio “frívolo” e as cartas escatológicas que trocava com a família. Acontece que a sua mãe, irmã e mulher (e se fosse hoje, os torcedores de todos os times da Bundesliga da Áustria) também falavam e escreviam palavrões, um traço óbvio da cultura alemã. De novo parece que o objetivo é o de negar a Mozart o status de um homem que precisava trabalhar com as ferramentas de seu enorme talento, vinculando a excelência de sua obra ou bem a uma genialidade celestial absoluta ou bem a algum tipo de distúrbio mental.
Os professores Henry Powell, da Escola de Medicina da Universidade da Califórnia, e o professor Howard I. Kushner, do Departamento de Educação em Saúde da Universidade de Atlanta, estudaram o caso e chegaram à conclusão de que os arroubos coprológicos do “Orfeu Alemão” faziam parte de sua cultura e personalidade, intimamente conectados à sua criatividade.
O valor do riso - O resultado desse estudo me faz lembrar um comentário de Virginia Woolf no seu ensaio sobre o valor do riso. Woolf dixit: “O humor é das alturas; só as mentes raras são capazes de escalar o pico de onde a totalidade da vida pode ser contemplada como num panorama; (…) Mais do que qualquer outra coisa, o riso preserva nosso senso de proporção; lembra-nos sempre que somos apenas humanos, que não há homem que seja um herói completo ou inteiramente um vilão. Tão logo nos esquecemos de rir, vemos coisas fora de proporção e perdemos nosso senso de realidade”.
Conta o biógrafo Wolfgang Hildesheimer que um ilustre contemporâneo de Mozart, o filósofo existencialista dinamarquês Søren Kierkegaard, quis fundar uma seita dedicada exclusivamente ao “divino” compositor. Algo semelhante aconteceu em 1969, quando se criou em São Francisco, na Califórnia, uma igreja ortodoxa dedicada a São John Coltrane, um templo do jazz, no qual se exige que os bispos, presbíteros e diáconos sejam músicos.
Não se deve dar muito ouvido aos críticos, mas quem quiser acrescentar ânimo, fogo e alegria à vida deve alugar algum tempo e os dois ouvidos a um sujeito divino, encapetado e bem humorado como o Mozart. Aleluia!