José Carlos Peliano: “Neste domingo de Páscoa, o que fica das últimas frases, palavras ou dos últimos filmes é que parecem ser brados de despedida dos dias corridos por cada um de nós”.
A última frase

José Carlos Peliano (*) –

Contardo Calligaris, falecido dia 30 de março, segundo seu filho Max, disse sua última frase: “Espero estar à altura”. É também o que informa em seu fino texto descritivo e especulativo Maria Lúcia Verdi, O sentido da vida para Calligaris, logo no dia seguinte, aqui mesmo no Brasiliários. Ainda que tenha seu nome colorido em verde, sua narrativa vem sempre ao ponto, nem crua nem malpassada, madura, entre observações e ideias floradas.

Minha simpatia por ele e suas ideias era comparada a que tinha também por Flávio Gikovate, inclusive os tipos eram para mim bem próximos, no mínimo pelas belas cabeleiras brancas, algodoadas. Paro por aqui porque minha intenção não é intercalar os dois nos meus comentários, foi apenas uma impressão pessoal minha aqui exposta sobre suas posturas orais e fisionômicas.

Então, Contardo abordava os assuntos sobre os quais comentava como fosse um cirurgião abrindo espaço num corpo humano para uma intervenção cirúrgica. Passo a passo, ou melhor, mão a mão, dedo a dedo, cuidava metaforicamente do órgão no qual dissecasse sua opinião exposta na mesa da cirurgia do argumento ou do debate. Era meticuloso, detalhista, clínico.

Confesso que li pouco de seus textos e o vi algumas vezes nas redes sociais e na TV, mas foi o bastante para admirar sua segurança, e conhecimento e simpatia. Como se diz, sentia a força de seus argumentos e ponderações. Era geralmente fácil acompanhar seu trabalho de popularização da psicanálise e arredores.

Não sabia que estava internado com câncer e, por conta dele, ter nos deixado órfãos caminhando por esse país destroçado por um desgoverno pandêmico. Logo de manhã no dia de sua morte foi a primeira notícia que vi estampada no celular. Os extremos se tocam: a primeira notícia e a última frase.

Nunca se sabe, ou quase nunca, o significado de uma última frase de alguém que cerra para sempre os olhos, a não ser que ela tenha sido acompanhada de um diálogo por mais entrecortado ou minimalista que seja. No caso de Contardo, imaginei somente a título de interpretação que ele talvez tivesse se referido ao que fez e o que deixou para trás de herança de sua vida. “Espero estar à altura” de sair de cena exatamente com o tamanho no espaço e no tempo de minha contribuição em vida. Eu fico com essa hipótese, pois me agrada mais, sem precisar prová-la a não ser pela licença poética que traz e conforta.

Pois então, me parece que cabe bem essa interpretação da última frase de Contardo em relação ao que foi e representou ele na vida durante seus anos de existência por aqui. E essa opinião não me veio apenas dessa sua última frase, mas de outras, pelo menos duas delas, que escutei e guardo comigo de momentos diferentes e distantes. Até argumento em contrário, acredito que as últimas frases ditas por aqueles que estão saindo da vida têm referência ao que viveram e viram por aqui. Por alguma razão ao abrirem a porta do suspiro derradeiro e saírem, alguns deles declaram seus manifestos.

Meu segundo sogro permanecia internado inconsciente depois de uma complicação cirúrgica. Estávamos somente sua filha, minha mulher, e eu com ele no quarto do hospital quando ele, de repente, senta-se na cama e sem abrir os olhos diz “eu tenho uma missão a cumprir”, deita-se novamente e ali fica ainda inconsciente até falecer poucas horas depois. A princípio essa frase nos surpreendeu, mas depois considerei ter ele se referido à missão de amigo alegre e apaziguador que sempre foi com família, amigos e parentes. De fato, era aquele tipo que todos gostariam de ter conhecido.

Antes de prosseguir, dois detalhes interessantes, tanto meu sogro quanto Contardo e eu nascemos no mesmo dia e mês, 2 de junho, enquanto Contardo e eu nascemos no mesmo ano. Geminianos, em geral comunicativos, versáteis e sociáveis além de muitas vezes curiosos e criativos. Nossa comunidade é representada por mercúrio, o mensageiro de todas as direções.

Meu pai igualmente no leito do hospital antes de abrir a porta para sair da vida estava somente comigo ao lado, também inconsciente. De repente meu pai grita “pepino” sem mais nem menos, enquanto ouço logo após uma freada brusca com som bem alto vindo da rua, como se meu pai quisesse ou fosse completar “que pepino é este para descascar” ou “olhe só o pepino”. Essa sua última palavra em vida que, no caso, denotava uma situação especial na qual ele havia pressentido a freada com anterioridade. Estava ele em outra condição de “vida”?

Por fim, lembro-me de um italiano que conheci num programa de intercâmbio técnico-científico, ele já formado, economista e pesquisador. Me contou que esteve uma vez numa praia do Rio de Janeiro aproveitando para nadar um pouco. Súbito uma onda o enrolou, em seguida entrou uma forte corrente que o levou mais para alto mar. Ele, apavorado, viu com clareza passar em sua mente o filme de toda sua vida. Foi salvo por um guarda-vidas que já o acompanhava. Teria sido o último “filme” de sua vida que não chegou a completar?

No frigir dos ovos, neste domingo de Páscoa, quando se celebra a transformação e a passagem para um novo mundo, nem que seja ao interior de cada ser vivente de renovação de vida, o que fica das últimas frases, palavras ou dos últimos filmes é que parecem ser brados de despedida dos dias corridos por cada um de nós. Se isso vale para a eventual entrada em outras ondas depois de abrir a porta de saída dessa vida, aí é outra história, outras considerações, outra esperança de muitos.

Lembro-me de Mário Magalhães da Silveira, ateu, marido de Nise da Silveira, amigos queridos, que sempre me dizia quando, ao lhes visitar, perguntava como estava indo, respondia: “atravessando”. O quê? Ele: a vida. Eu completava, para onde? Ele finalizava: “para lugar algum”. Dado isso, o que me resta dizer é que o último que se for dessa vida apague a luz, feche a porta e solte seu brado retumbante!
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(*) José Carlos Peliano é poeta, escritor, economista.