"A vida é de quem se atreve a viver".


Roger Casement (1864-1916), revolucionário irlandês e herói de uma causa que envergonha a humanidade desde sempre: o escravismo e o extermínio de povos indígenas, no Brasil e na África
Um diplomata revolucionário, poeta e astro de cinema

Angélica Torres –

Segredos do Putumayo, o novo documentário do cineasta Aurélio Michiles, chega em momento mais do que necessário pondo luzes sobre Roger Casement (1864-1916), revolucionário irlandês e herói de uma causa que envergonha a humanidade desde sempre: o escravismo e o extermínio de povos indígenas, no Brasil e na África.

Realizado ao longo de cinco anos, com base em ampla pesquisa de documentos históricos, diários, fotos, entrevistas, Segredos do Putumayo resultou em impactante denúncia, justo quando a Amazônia sofre incêndios criminosos e nossos indígenas padecem desde o completo desamparo ao alto número de mortes, por descaso governamental. Não é mera coincidência. A memória de Putumayo é a constatação da história escabrosa dos interesses imperialistas.

Filmado em La Chorrera e arredores de Leticia (Colômbia), Tabatinga e Manaus (Amazonas), entre os índios Uitoto, Bora, Ocaina e Muiname, o filme foi lançado este mês no festival É tudo Verdade e recebeu do júri menção honrosa, para inconformismo de muitos que o assistiram e o queriam vencedor da competição. Mas outros festivais virão e espera-se que esteja à disposição para ser visto no escurinho dos cinemas, em meados de 2021, como deseja e promete o cineasta. Ninguém perde por esperar.

Entre as muitas qualidades do documentário, uma que logo captura o espectador é a mescla harmônica dos registros fotográficos de Casement com a ambientação e o tratamento das imagens atuais, produzidas sob a direção de André Lorenz Michiles. Mas o clima gerado também pela trilha sonora de Alvise Migotto atinge em cheio a emoção, tomada sobretudo pelo pungente conteúdo dos diários de Roger Casement – cerne deste novo trabalho de Aurélio Michiles. Desenvolvido junto a Angus Mitchell, o historiador irlandês e organizador do resgate desse documento histórico em livro, o filme contou também com a colaboração do escritor Milton Hatoum, antigo amigo e parceiro de Aurélio.

De fins do século 19 à segunda metade do século 20, o cidadão irlandês Roger Casement serviu à coroa britânica como cônsul no Congo e depois na Amazônia, aonde testemunhou e escancarou ao mundo as barbaridades cometidas aos indígenas dessas duas regiões por empresas exploradoras de borracha. A missão na Amazônia era a de investigar os boatos que corriam em Londres sobre a violência do tratamento dado aos indígenas brasileiros, peruanos e colombianos, na região do rio Putumayo, pela Peruvian Amazon Company.

Casement registrou em texto e também em imagens os horrores praticados com crianças, jovens, mulheres, homens e idosos indígenas, se não trouxessem muitos quilos da borracha coletada na floresta, carregada presa à testa – e sem serem alimentados, que dirá remunerados. Impossível não se emocionar profundamente com a violência exposta na tela. Chega-se a lamentar que aqueles índios não fossem guerreiros, para defender seu povo das sevícias na escravidão imposta pelos funcionários do empresário Julio César Arana.

(Abaixo, Michiles e o historiador Angus Mitchell.)

Cônsul e poeta rebelde - Além de precipitar o fim do mercado da borracha no Brasil, o ousado enfrentamento do conde ao império britânico acabou por levá-lo à morte, condenado por “alta traição”. Mas mais que um diplomata e anos depois reconhecido como herói da história da Irlanda, Roger Casement era um poeta. Seus diários são narrados no filme pelo ator irlandês Stephen Rea em tom e inflexão fleumáticos, que contrastam e ao mesmo tempo enfatizam a compaixão do autor pelo sofrimento dos índios. Já em diferentes trechos, Casement é sutilmente ferino quanto aos verdugos.

Rea dá então, magistralmente, vida aos textos, que longe de soarem como frios relatórios diplomáticos provam ter sido Roger Casement um herdeiro da boa literatura irlandesa – essa que reúne nomes como Beckett e Joyce, Oscar Wilde, Bernard Shaw e Thomas Moore, além do poeta William Butler Yeats.

Não por acaso, o rebelde, fascinante, controverso diplomata (que no Brasil foi cônsul em Santos, Belém e Rio), atraiu a atenção de grandes escritores. Entre as obras literárias envolvendo sua lendária personagem está o célebre poema The ghost of Roger Casement, publicado em 1936 por W.B. Yeats, que repete o verso, ainda tão atual: “o fantasma de Roger Casement está batendo à porta”. Agora é Michiles quem traz de volta à cena esse “fantasma”, que tanto incomoda os fascistas de todos os tempos.

Segredos do Putumayo é tão atual, que, outra imediata sinapse leva a ver Julian Assange, do WikiLeaks, revivendo hoje calvário semelhante ao do revolucionário irlandês. Assim como Assange foi envolvido em acusações de cunho sexual e encarcerado, a polêmica que impediu o indulto a Roger Casement deveu-se a supostos diários sobre sua conjecturada homossexualidade.

Esses tais diários foram dados como descobertos pelo Ministério de Relações Exteriores britânico e noticiados como objeto de investigação das relações que manteve em sua vida privada. Em The ghost of Roger Casement, o poeta expõe sua postura nacionalista à Irlanda e de repúdio ao imperialismo britânico e noutro poema, também de 1936 e intitulado “Roger Casement”, Yeats escreveu: “They turned a trick by forgery / and blackened his good name”.

Foto da viagem de Casement ao Congo belga, que o filme mostra: um pai olha mão e pé cortados da filha de 5 anos

O engajamento - Alguns especialistas defendem que as viagens de Roger Casement ao Congo e em 1910 e 1911 ao alto Amazonas, moldaram a sua aura de revolucionário. De volta ao Reino Unido, engajou-se na luta pela emancipação da Irlanda do jugo britânico, tornando-se um dos líderes da rebelião “Levante da Páscoa”. No entanto, foi pego trazendo armas alemãs para o Levante às vésperas de estourar a 1ª Guerra Mundial, o que precipitou sua prisão e condenação à morte, em 1916.

Desonrado antes e depois de seu enforcamento como traidor da causa inglesa, Casement caiu em ostracismo. Cinco anos após sua morte, em 1921, o Estado irlandês já declarado independente o adotou como símbolo, mas só em 1965 é que os seus restos mortais seriam devolvidos à República em um funeral com honras de herói.

Michiles durante as filmagens

Filho de Manaus – Pode-se afirmar que Aurélio Michiles (Manaus, 1951) atinge o auge de sua carreira com este filme, que diz tanto de sua própria militância por ideais humanistas e, em especial, em defesa dos índios do Amazonas. A obra documental que ele vem construindo; as peças teatrais que escreveu; o engajamento quando secundarista e depois universitário em Brasília, durante a ditadura militar; os poemas, as críticas, o olhar sobre o país e o mundo publicados em seu blog Ceuvagem, mostram a coerência de suas convicções sociopolíticas e a firme e combativa postura como cidadão e artista, a vida toda.

Segredos do Putumayo é mais um de seus documentários de abordagem à exploração da borracha no contexto econômico geopolítico. Mas desde os seus primeiros trabalhos, Michiles mostrou que não deixaria barato para os interessados no silêncio reinante sobre o genocídio indígena na América do Sul. Por compromisso com um projeto de vida e arte, ele põe em primeiro plano a defesa a diferentes povos indígenas da Amazônia em: Guaraná, Olho de Gente (1982), O Sangue da Terra (1983), A Árvore da Fortuna (1992), A Agonia do Mogno (1992), Davi contra Golias — Brasil Caim (1994), O Brasil Grande e os Índios Gigantes (1995) e O Cineasta da Selva (1997).

“Meus projetos são como o rio Amazonas: de algum modo, deságuam e se alimentam deste rio-mar. Saí de Manaus há décadas, mas a cidade e a memória que tenho dela se encontram permanentemente em mim”, afirma. Noutros documentários, suas temáticas se voltam para o cinema, a arquitetura e as artes em geral: Que Viva Glauber! (1991), Lina Bo Bardi (1993), Arquitetura do Lugar (2000), Teatro Amazonas (2002), Gráfica Utópica (2003), Higienópolis (2006), Encontro dos Sabores no Rio Negro (2008) e Tudo Por Amor ao Cinema (2015), entre outros mais.

Excertos dos diários da Amazônia citados no filme

“No Brasil, a cor da pele chega a ter valor de casta.” (...) “Quase todos os habitantes aparentam ter puro sangue índio. Andam vestidos, o que é uma estupidez, pois um corpo magnífico da cor do bronze em vestimentas sujas e saias arrastando na lama é um grande erro. Além disso, a moral se vai quando as roupas vêm.”

“Caoutchouc tinha a princípio o nome de “borracha da índia” porque vinha das Índias e sua primeira utilidade para os europeus foi apagar algo escrito. E hoje ainda chama-se “borracha índia”. Será por que apaga os índios?”

“Tentei carregar um fardo de borracha. Fiz com que o erguessem e o colocassem no meu ombro. Não consegui dar três passos.” (...) “Pedi uma balança. Um deles, que se apresentou com o nome de Kaimeni, pesava 29,5 quilos e estava, de fato, carregando um fardo de 30,5 quilos! Um quilo a mais do que seu próprio peso”. (...) “Sinto mais do que compaixão por eles”.

“Estamos cercados de criminosos por todos os lados. Arana, nosso anfitrião, é um assassino covarde. Mas ele e sua gangue são a verdadeira Peruvian Amazon Company. Os acionistas e a Diretoria em Londres são apenas o manto de respeitabilidade e a garantia do dinheiro, dos investimentos”.

“Nunca tive prazer em caçar. (...) No entanto, seria capaz de exterminar a tiros esses criminosos infames muito mais facilmente do que atirar num jacaré ou matar uma cobra. Juro por Deus que enforcaria todo esse bando de miseráveis com as minhas próprias mãos, com o maior prazer, se tivesse poder para tal. Cheguei à conclusão de que a única saída para estes indígenas do Putumayo da condição miserável a que foram reduzidos é fazer uma insurreição armada contra esses senhores da Casa Arana.” (...) “Adoraria armá-los, treiná-los e instruí-los a se defenderem contra esses bandidos”.

“É ingenuidade acreditar que de uma hora para a outra os colonizadores darão o direito à liberdade. Jamais! Nenhum Império foi destruído sem que houvesse resistência.” (...) “Será que algum protesto ou intervenção internacional seria eficaz para obrigar o Peru, a Colômbia e o Brasil a proteger os seus povos indígenas? Temo que não.”

O julgamento do herói

Casement na literatura mundial

1902 Sai O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, inspirado nas viagens de Roger Casement e Conrad pelo Congo e que serviu de base para o filme Apocalypse Now, de F.F. Coppola.

1912 O Mundo Perdido, de Arthur Conan Doyle, inspirado nas viagens de Casement pela Amazônia, que inspirou os filmes Parque dos Dinossauros e Indiana Jones.

1922 Ulysses, de James Joyce, no qual Casement é apenas mencionado em um importante excerto do episódio do Ciclope, que versa sobre ser irlandês, denotando ser a forma encontrada por Joyce de destacá-lo como um herói nacional na história da Irlanda.

1936 "The Ghost of Roger Casement" e “Roger Casement" poemas de W.B. Yeats, Prêmio Nobel de Literatura 1923. Ambos estão publicados no Collective Poems of W.B. Yeats. Veja aqui

2010 O sonho do Celta, de Mario Vargas Lhosa, Nobel de Literatura 2010, romance biográfico ficcional sobre a vida de Casement.

2016 Diário da Amazônia de Roger Casement, de Angus Mitchell – que deu origem ao filme Segredos do Putumayo. O livro foi publicado pela EdUSP, com edição de A. Mitchell, org. de Laura Izarra e tradução de Mariana Bolfarini.

Ainda: embora não trate diretamente da Amazônia, o King Leopold's Soliloquy (1905), de Mark Twain, tem Roger Casement como personagem principal e o La Voragine (The Vortex), do colombiano José Eustasio Rivera (1924), aborda as atrocidades do Putumayo.

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