"A vida é de quem se atreve a viver".


Angélica Torres: "As falas de Maria Lúcia Verdi (foto) “em voz baixa”, título de seu novo livro de poemas traduzem o absurdo, a perplexidade, o atordoamento, as incertezas que permeiam a condição humana".
Elogio à alteridade

Maria Lúcia Verdi lança livro de poemas “em voz baixa” nesta sexta-feira, 5/7, das 18h30 às 21h30, na Livraria Sebinho, 406 Norte, Brasília.

Angélica Torres –

As falas de Maria Lúcia Verdi “em voz baixa”, título de seu novo livro de poemas que sai pela Editora Iluminuras, traduzem o absurdo, a perplexidade, o atordoamento, as incertezas que permeiam a condição humana, suscitando em quem a lê, e ouve, a contradição do pertencimento, ainda que nossa singularidade se mantenha ante os caracteres comuns a todos. Por isso, o sumo dos versos e da prosa da poeta gaúcha-brasiliense podem soar como um elogio à alteridade, ou outridade, essa sensível capacidade que felizmente muitos têm de se colocar no lugar do outro.

“O que se mostra se esconde / o que se toca desvanece”: lucidez e sonhos (“o susto paradoxo”), gravidade e vazio, corpo e mente, natureza e cosmo, o longe tão próximo, são questões que a poeta contrapõe em sua escritura, atenta aos sons, ruídos, silêncios que lhe sopra o ouvido interno. Com sapatos vermelhos de andarilha estrangeira, elegantes e sensoriais, como chip, como transistor, ela parte, sem asas, levando junto o leitor em viagem pelo mundo exterior conectado ao dela, particular e íntimo.

"Escutar a vida / desde a breve/ entrada do alto”. Uma palavra que despenca pela fresta das nuvens a poeta a colhe e a matéria de sonho e memória se torna a pedra, o cimento, a pá com que ela prepara “a terra cheia de larvas” para a construção da cidade, que é senão o seu universo peculiar, tramada com várias outras em que viveu e que visitou em sua carreira diplomática.

Assim, desde a cama, o corredor, os objetos de arte, a solitude, o jardim do reino em que ela vive, compartilhando as manhãs, tardes e noites com insetos e bichos alados, não surpreende ser Preta, sua cadela de estimação já cega e alquebrada, a trazer à cena em primeiro plano a matéria da alteridade. É da água sofregamente bebida por Preta que emerge a reflexão da identidade. Água como oásis, alívio, “mar como horizontal respiro”, o fluir da vida.

E é do mesmo elemento da natureza que mais adiante surgem outras de suas vozes potentes (são tantas ao longo do livro), uma em prosa e outra em versos – e sem que a comiseração, embora profundamente latente, se ressalte e derrame-se maculando as cenas: do mendigo no espelho d’água do Masp, em prosa; e da poeta como protagonista dos versos em sussurros, transcritos abaixo:

Sempre que eu te pedir água

me traga um copo bem cheio

estenda a mão devagar

olhe nos meus olhos

naquele lugar seco

que pede água

 

Tenha, mas não demonstre

a terna compaixão

dos amigos

estenda a mão em silêncio

aguarde que a minha

atravesse o deserto

 

alcance o copo

Embora assumida em seu ateísmo, ou, talvez, agnosticismo?, Maria Lúcia Verdi por vezes evoca a voz dos místicos – não preciso aqui citar Hamlet –, ao escavar mais abaixo, descer aos ossos da própria caveira, acomodar-se (expõe-se a tal profundidade, a poeta!), pra nos mostrar o medo num punhado de pó, neste fragmento de monólogo com a outra em si, mais adentro ainda:

esta caveira entende

e desentende o mundo

(...)

sente-se

e gostaria de ouvir os pássaros

desde um outro espaço

Em voz baixa ela aproxima restos arqueológicos de Hiroshima, Alcântara, Pompeia, Tiradentes e muralhas, pinturas rupestres, ruínas e diz, do alto de seu audaz e amplo voo: “a carranca que não assusta/ monstros que não se afastam”. Noutras páginas, ela sobe as escadas da casa da infância com as cinzas da mãe nas mãos; asfixia-se ao entrar no guarda-roupa, punindo-se, em busca da que a faz ser o que é. Antes, modela-se catando pitangas, depois pinta sensuais delicadezas chinesas e projeta, esteta, um esplêndido crepúsculo na metáfora para “o flanco ensanguentado/ a anca da égua inobservada/ galopando na noite”.

Tudo isso e mais imagens se conjugam nas colagens de Yury Hermuche que ilustram o livro, incluindo citações de referências da poeta, como Virginia Woolf, Beckett, Drummond e outros, em torno do alheio, dos descaminhos, do silêncio, da noite do nada em Hegel, do vazio na Void-Stone de George Brecht, o artista nova-iorquino da vanguarda conceitual.

Mas que não se interpretem em voz baixa confidências de poeta em vã penitência. Afinal, aqui há “poesia como diário /não escrito”, ela assim quer. Como as performáticas Marina Abramovic e Gina Pane na chamada body art, Maria Lúcia Verdi também oferece o corpo do poema a inscrições de tormentosa imagética, pondo em questão a relação entre o eu e o outro e levando a plateia (o leitor) a refletir, por si, a partir da alteridade.

Esse exercício – aliás, necessário à grande parcela da população brasileira, no momento sociopolítico e econômico que o Brasil vive – é versejado pela poeta com seu olhar agudo e humano ouvido diante de uma formiga e uma coruja, uma cadela e um ouriço, um mendigo, a planta brotada ao lago de um esgoto e mesmo Deus, em diálogo com um transeunte na Avenida W3. “Rosto fora tudo fora tudo outro”. “A mesma luz o mesmo ângulo/ a igualdade da desigualdade”, professa em seu poema-síntese da outridade.

Ao fim, não pairam dúvidas de que os poemas "em voz baixa" tramam-se harmonicamente a outros gêneros literários. Ao longo da leitura depara-se com o conto, a crônica e o ensaio; o esquete teatral, o diário e o aforismo. E sai-se com uma impressão de viagem concebida e encadeada como romance encomendado ao azul-futuro. Disso tudo, o que diriam seu mestre Lacan e Jung não menos? No posfácio, a escritora e professora Vilma Arêas certifica o enigma: “O seu livro, Malu, é um mundo. Seu livro sabe e não sabe. Sabemos que sabe – mas ele sabe dizer que não”.

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